São Paulo, sábado, 26 de julho de 1997
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A garrafa do náufrago

RUBENS RICUPERO

De tempos em tempos, quase com regularidade cíclica, voltam-me dúvidas sobre estes artigos dos sábados. Longe do Brasil há quase três anos, as notícias que me chegam são esporádicas, incompletas. Não me atrevo, a não ser em casos excepcionais, a comentar uma realidade vertiginosa cujos pedaços esparsos não bastam para armar a figura do quebra-cabeça.
Pela primeira vez numa carreira ligada a coisas brasileiras, vivo e trabalho num meio onde o Brasil é quase só "um retrato na parede". No ambiente das Nações Unidas, cercado de gente da China e da Índia, do Mali e da Etiópia, fica difícil captar o clima geral e os temas de interesse do público brasileiro.
É nessas horas de maior insegurança que me interrogo. Estarei abusando da hospitalidade da Folha ao ocupar espaço em um caderno chamado Dinheiro, sem ser economista, como meus colegas de página? Será que alguém me lê, será que a mensagem enviada na garrafa do náufrago vai ser recolhida?
Em tais momentos sempre acontece algo, para mostrar que, neste vasto mundo, alguém escuta, ou melhor, lê. Foi o que hoje me sucedeu ao receber carta de leitora de Higienópolis, que morou dois anos na França, "cuja história acompanho com emoção", como diz. Só não revelo seu nome por não saber se ela gostaria. Pede-me, porém, a opinião sobre a vitória do Partido Socialista francês, à luz de comentário desprimoroso e, ouso dizer, apressado, feito por outro articulista.
Apressado, digo, pois já devíamos ter aprendido que os partidos e políticos devem ser julgados pelos seus atos e resultados. Veja-se, por exemplo, o caso do presidente Chirac e da direita. Ganharam as eleições em 1995 com uma plataforma que denunciava as "fraturas sociais", a exclusão, a marginalidade e prometia prioridade à luta contra o desemprego. Ao tomar posse como primeiro-ministro, Juppé se comprometeu a reduzir o desemprego e declarou: "É nisso que desejamos ser julgados quando chegar a hora". A taxa de desemprego era de 11,5% então. Quando chegou a hora fatal, o índice era de 12,8%...
Foi por essa razão que William Pfaff, em minha opinião o mais perceptivo analista da atualidade, comentou que os eleitores não tinham sido inconsistentes, ao votarem primeiro por Chirac e, dois anos depois, pelos socialistas. "A aliança socialista de Jospin foi eleita por ter feito em substância as mesmas promessas de Chirac. Os eleitores não se contradisseram. Os políticos é que não fizeram o que tinham prometido."
A necessidade de coerência, o respeito pela confiança do povo, valor precioso e frágil que um governo não se pode dar o luxo de sacrificar levou Tony Blair a asseverar: "Fizemos campanha como o Novo Labour. Governaremos como o Novo Labour."
Nesse sentido, o começo do governo Jospin não enganou seus eleitores. A política econômica que anunciou na segunda-feira passada foi, como disse "Le Monde", um "flagrante desmentido" à impressão de que não existe mais diferença entre esquerda e direita, demonstrando que "uma outra maneira de governar era possível".
Confrontado com o mesmo problema de Juppé -reconciliar a Europa e o emprego, reduzir o déficit sem liquidar a recuperação-, sua resposta foi diferente nos meios e nos fins. Nos meios: pela auditoria do Tribunal de Contas, que constatou um déficit herdado da direita superior ao anunciado; pelo debate aberto, com a participação não só dos técnicos, mas da pluralidade dos atores políticos e, no caso das privatizações, pela consulta aos trabalhadores de cada empresa. Nos fins: ao recusar uma austeridade que sufocaria a retomada econômica; ao ter coragem e sensatez de entender a meta de 3% do déficit como tendência e não fetiche arbitrário; ao poupar as pequenas e médias empresas, ao preservar a classe média e recorrer sobretudo às grandes companhias e administrações estatais para delas extrair, por meio de taxa temporária, a contribuição adicional requerida para chegar à moeda única.
Foi criticado pelos que temem que o aumento dos impostos desestimule o investimento. Acontece, porém, que quase não houve investimento nos últimos anos, apesar de uma inflação baixa e de uma das menores taxas de juros do mundo. Na verdade, os empresários não investem porque sabem que não existe demanda. E não existe porque, de um lado, o desemprego, do outro, a apropriação pelos lucros, em detrimento dos salários, de quase todo o aumento da produtividade e de outros ganhos da economia, pouco deixam para consumir.
Não há garantia de que esse programa tenha êxito assegurado. Seria mais grave, contudo, insistir num caminho que não deu certo na Europa dos anos 30, nem na dos anos 90: acentuar ainda mais a austeridade num momento de recessão, com inflação quase inexistente. O resultado é que, em toda a parte, primeiro na Inglaterra e na França, amanhã talvez em outros países, o eleitorado se está revoltando contra essa receita fracassada, contra uma Europa unida que lhe aparece como sinônimo de desemprego e insegurança.
A leitora que me escreveu se refere amavelmente a um artigo anterior, "A escolha e o sonho". Por coincidência, o editorial do "Le Monde" de terça-feira se intitula "As escolhas da esquerda". Após dizer que, pela primeira vez, um governo de esquerda se recusa a atacar as classes médias, o jornal diz tratar-se de "escolha política forte e feliz", por corresponder à vontade anunciada de reequilibrar o peso fiscal entre o trabalho e o capital, entre as famílias e as empresas, pode-se acrescentar, entre seres humanos e o mercado de especuladores e rentistas. Esta é a prova dos nove para distinguir Jospin e Juppé ou, nas palavras do editorial, para mostrar que a esquerda não é a direita.

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