São Paulo, sábado, 26 de julho de 1997
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Cozido de religião e morte

RODOLFO LUCENA
DA REDAÇÃO

Stephen King deve ter na cabeça um laboratório para experimentar medos. Como é que nascem? De onde vêm? Como ficam mais fortes ou mais fracos?
As experiências, porém, ele faz com a cabeça dos leitores.
A fórmula é comum: cenários simples, cotidianos, personagens ordinários, que vão sendo distorcidos, deformados, incorporando tensões, criando o mundo do terror de King.
Em "Desespero", ele volta com um vigor que parecia estiolado em obras mais recentes, em que a repetição de recursos literários amornava a ação.
A primeira frase dá o tom: "Oh! Oh, meu Deus! Que barbaridade!"
Mary se apavora com um gato morto, espetado em uma placa de trânsito na imensidão vazia da US 50, "a auto-estrada mais solitária dos Estados Unidos", cortando o deserto de Nevada.
O desconforto logo vai ficar pior, quando um carro de polícia passa chispando, diminui a velocidade, deixa-se ser ultrapassado pelo carro de Mary e Peter e, depois, sai em perseguição, liga as luzes, faz sinal para o casal de turistas parar.
Estão lançadas as sementes, que King trata de cuidar bem.
Onipotente, a autoridade faz o que quer com os desamparados turistas. Seu tamanho e poder aumentam cada vez mais.
Aos poucos, em capítulos cheios de violência e dessa característica deformação de situações comuns, o policial arrebanha mais vítimas.
Entre elas está, claro, aquele que será o artífice da destruição do mal. Um menino de 11 anos, bonzinho, determinado, cheio de fé e religiosidade.
Os heróis de Stephen King costumam escapar do terror com a ajuda, ou pela ajuda, da fé em alguma entidade -o poder do amor, a lembrança do tempo de criança ou até uma imagem em um quadro antigo, como em "Rose Madder".
Em "Desespero", foram eliminados os intermediários. O garoto conversa direto com Deus, faz pedidos, promessas e recebe orientações preciosas.
O vínculo fica evidente quando um amiguinho de David Carver é atropelado, entra em coma, é desenganado. Na plataforma sobre a árvore em que os dois costumavam brincar, David pede pela vida de Brian. A prece é atendida.
O próprio garoto explica: "Eu falo com Deus. Rezar é isso, falar com Deus. A princípio, é como falar com a gente mesmo, mas depois muda".
Há um cheiro de carolice, pouco comum na obra de King. Mas também traz um quê dessa distorção do cotidiano, do convencional.
Afinal, muita gente acredita ser possível essa conversa com um Criador, pintado como bondoso, mas também vingativo, "cruel" -como define o garoto.
Aqui, Deus ajuda um punhado de desesperadas vítimas de um demônio feito policial, depois mãe -horror dos horrores, para o pequeno David.
O garoto entrega as mensagens. Nem sempre é ouvido, mas acaba sendo o elemento catalisador do grupo. Aí, outra marca de King: a união faz a força, é preciso que o círculo esteja completo para que o mal possa ser derrotado.
Já aconteceu assim, por exemplo, em "A Coisa", em que só a ação conjunta deu a vitória aos heróis-meninos (novamente a criançada, o mundo infantil).
Enfim, em "Desespero" aparecem os recursos tradicionais de Stephen King, inclusive os palavrões e as cenas de sexo, realizado ou fantasiado.
Mas estão com brilho, lustrados como se fossem novos, garantindo a ação e o ritmo que o leitor procura e que asseguram a diversão.
(RL)

Livro: "Desespero"
Autor: Stephen King
Preço: R$ 38
Lançamento: Objetiva

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