São Paulo, segunda-feira, 28 de julho de 1997
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Os PMs cantam, e quem dança somos nós

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ninguém me contou, não, eu vi. Com esses olhos que -se isso também não tiver mudado até lá- a terra há de comer. No começo, ainda podia se pensar que fosse uma passeata de estudantes ou até de professores em greve. Mas depois ficou claro: eram policiais mesmo. Brigadistas saíram às ruas da até então previsível Porto Alegre, reclamando melhores salários e... cantando.
Aliás, não estavam simplesmente cantando. Entoavam "Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores".
A música, cantada por Geraldo Vandré nos festivais da canção do fim da década de 60, virou o símbolo da contestação juvenil contra o regime militar. Em passeatas de protesto, os jovens da época cantavam "Vem vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer", pra depois ser espancados pelos cassetetes dos policiais, então agentes da repressão.
Pois hoje são esses mesmos policiais que cantam os versos 30 anos mais tarde. Parece que tinha gente lá da velha-guarda querendo mudar a letra pra "Vem, pegue o revólver/ Que o governo vai saber/ Se não aumentar agora/ A porrada vai comer". Outros, fiéis à rotina, também queriam mudar o começo de "Caminhando e cantando e seguindo a canção/ Somos todos iguais, braços dados ou não/ Nas escolas, nas ruas, campos, construções" pra "Extorquindo, batendo e espancando negão/ Dá logo esse aumento/ Senão, não tem reeleição". Mas o que apareceu mesmo foi a tropa unida cantando tudo direitinho.
O fenômeno não é inusitado só pela música, mas principalmente pelo fato de policiais entrarem em greve (caso de Alagoas e Pernambuco) e deixarem o povo assim, ao léu, à mercê dos outros marginais que não fazem greve nunca. Algumas teorias já tentam explicar o faniquito da PM gaúcha (dizer que se trata simplesmente de uma reivindicação de classe seria menosprezar esse momento quase filosófico).
A primeira é temporal, o mundo muda tão, mas tão depressa nessa época de comunicação supersônica e de revoluções constantes que nem deu pra perceber que, desde os incidentes em Diadema até agora, deu-se uma reviravolta na polícia, e hoje só tem gente muito sensível por lá.
Outra, mais cínica, seria a de que até a PM viu, com o reinado do Kaiser d'Eu (vulgo FHC), como dá certo esse negócio de trocar de lado -e passar para o lado dos que fazem "baderna" e exigem tratamento melhor foi uma consequência imediata dessa conclusão.
Outra, veiculada pelos machões guascas, garante não passar de uma infiltração de brigadistas gays nos quartéis, que, re-vol-ta-dos com as botas inconfortáveis e aqueles cassetetes enormes que eles têm de ficar usando (um ultraje, santa!), resolveram liberar toda aquela energia pink reprimida debaixo dos uniformes démodé.
Não se sabe ainda, ao certo, qual foi a razão verdadeira dessa manifestação dos policiais, tanto no Sul quanto em outros Estados. Óbvia é só a total falência do nosso modelo pseudofederalista, em que grande parte dos Estados está à míngua.
A segurança, que já era mínima com os policiais na ativa, agora cai a quase zero. Só não acaba totalmente porque temos ainda o Exército -o que, como talvez se apressem em dizer os sobreviventes da época de Vandré, não é muita garantia.
Ainda é incerto, enquanto escrevo, se a manifestação dos PMs gaúchos sensibilizou suficientemente o governador, mas, por via das dúvidas, o Exército já atendeu ao pedido do governo e está de prontidão caso a situação degringole.
Comenta-se que, no telefonema por apoio, o secretário da Segurança -em vez de fazer um pedido formal- teria cantado a música "Help", dos Beatles, para o general responsável. E foi só depois de muito "Should I Stay or Should I Go?" que a soldadesca resolveu aderir. Mas é só um boato.

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