São Paulo, terça-feira, 29 de julho de 1997
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Política brasileira é uma Hollywood tropical

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Toda hora me perguntam: "como é, não vai fazer mais filme?" Acho chato. Parece que eu estou vendendo Chica-bon. Será que não vêem que estou fazendo um filme de mim mesmo, dando duro na TV e em jornais? Ai, minto: "Tenho aí uns roteiros em que eu estou caprichando..." E faço uma cara de: "por enquanto ainda é segredo..." Mas, a verdade é que andei anotando idéias para filmes. Às vezes, é uma cena solta, um início, às vezes, um final. Abrirei para o leitor meu caderno de anotações:
"O Impeachment" - a Missão. (Cenas finais. Realismo mágico) - "em off ouvimos o hino nacional. Vozes de caras-pintadas atroam o ar de Brasília. Sentado na mesa do Planalto, sozinho, de casaca, faixa verde-amarela, o presidente parece ter prazer em seu martírio. Porta do salão se abre com estrondo. Rosane entra, de tafetá vermelho, com o ajudante de ordens em uniforme militar todo branco. Clima épico de final. O oficial segura por uma corda um pequeno cabrito que berra. A mulher, com um alfanje na mão, grita para o presidente: Só a magia nos salva! E degola o cabritinho. O sangue jorra e mancha de vermelho o mármore do palácio e o rosto de Collor, pálido e imóvel como uma estátua. Pingos de sangue caindo em seu rosto.
Ao fundo, o hino nacional continua...".
"Science fiction ecológico" - "Nave desce suavemente no pantanal. ET se esgueira para fora de nave brilhante. De olhos brilhantes, como uma grande gelatina simpática, ele sorri para alguém e aponta seu dedo luminoso. Jacaré devora ET sob os jatos de fogo do disco que se ergue, fugindo..."
"O Amor na Vale do Rio Doce" (Filme Neoliberal) - "...jovem yuppie vai entrando na Bolsa de Valores, sob protestos da CUT. Cores fortes, bandeiras vermelhas. Jovem mulher da CUT joga uma pedra no rosto do executivo. Sua testa sangra. Os olhos do empresário se fixam nos olhos da agitadora. Ela, morena robusta, morde os lábios sem cor. Na confusão que se segue os dois não param de se fitar entre cassetetes e bandeiras vermelhas..."
"O Quórum Maldito" (Surrealismo político - Influência de Buñuel) - "...No encerramento dos trabalhos, verifica-se que os portões do congresso estão trancados. Deputados morrem lentamente de fome e sede depois de infrutíferos esforços das Forças Armadas para destrancar as cúpulas. Morte lenta diante da TV Senado. Venda dos últimos sanduíches, troca de favores. Lágrimas. O desespero, o canibalismo mútuo. Bancada evangélica devorada por petistas. PFL e PMDB unidos devoram tucanos. Revoada de penas coloridas."
Filme Albanes - "Pálido, de rosto baixo, Paulo de Tarso ouve sua sentença enquanto Hélio Bicudo lê a CPI do PT. Em lágrimas, Paulo se ergue e grita: 'Sim! Eu sou um rato pequeno burguês!' E desmaia sob os olhos da cúpula do partido. Os rostos stalinistas não movem um músculo..."
"A Morte do Cachorro Quente" (Filme catástrofe) - "...Menina linda lambe belo 'sorvete colorê'. Música infantil: "Unidunitê'. Outra menina morde um cachorro quente. Clarão atômico. Toda a praça de alimentação de Osasco Shopping explode. Sorvetes voando, mesinhas, plásticos, Coca-colas e sangue, cabeças, braços, milkshakes, sobremesas, corpos voando, tudo em câmera lenta como no final de 'Zabriskie Point'. Música: 'Sepultura'"...
"Alien 3" - "...subitamente, a cabeça de Serjão começa a girar em todas as direções. Cai para o lado, espalhando uma gosma branca. De seu pescoço decapitado, surgem fios e luzes, enquanto sua voz de robô programado para dizer besteira continua soando. Close espantado de FHC. Serjão, um andróide".
"Alagoas de Sangue" - Filme policial - (Cena da solução do mistério) - Correndo num Porsche prata por Alagoas, entre PMs em greve e crianças com fome e sem escola, Collor chega no hotel da praia. Entra no quarto. PC Farias grita: "Não adianta! Chega de ser bode expiatório! Vou contar tudo!"
Bêbada, sua amante Suzana Marcolina, de baby-doll, dá gargalhadas. Com tiro certeiro (mais do que seu pai) Collor, disfarçado de segurança, mata PC com tiro certo, agarra Suzana pelos cabelos, beija-a com furor e mata-a também. Foge.
"Reforma Administrativa" - (plano de trabalho: filmar a epopéia da reforma administrativa - seriado longo com 130 capítulos, sem final previsto).
"O Jeca" (remake de Mazzaropi) - "Itamar inaugura campanha em Juiz de Fora. Chuva de pães de queijo e 'Coração de Estudante'".
"O Grande Golpe" - (final feliz) - "Entre barrigas, uísques, frangos assados, sandálias 'Riders', bermudas verdes, camisas laranja, amantes árabes, esfihas, Maluf, Pitta, Paulo Afonso e outros cantam 'He' s a jolly good fellow', enquanto a lancha sobre o rio Amazonas, ao pôr do sol. Ao fundo, a Zona de Manaus... Música árabe e sertaneja sobe..."
"Apertem o cinto, o passageiro sumiu" - "Enquanto o passageiro cai pelo buraco, sugado, a aeromoça segura perna do autor do atentado que, gritando, olha o buraco e lembra de sua vida de professor tarado, mostrando o pau para as alunas. Gritos de alunas e gritos de passageiros somam-se".
"Plantão Médico" (plágio) - (NB: não filmar. Pode ser grande fracasso, a versão brasileira "caruarus e genovas". Filmar rins e velhinhos doentes não dá grana. "Não é comercial", me disseram os investidores).
"Abertura de filme" - "O bravo PM ergue a pistola. Em flashes de lembrança, vemos 111 corpos caindo em série. 'Cross cutting' no chão do Carandiru.
O PM sorri, nostálgico e dá três tiros certeiros nas costas de um rapaz num carro. Contra o limpador de pára-brisas que bate no sangue, surge o título do filme: 'Diadema - a Cilada'.
"O Orçamento de Sangue" - "... Enquanto os golpes de picareta abatem Ana Elizabeth para dentro da cova, sob os olhos maus de seu marido e de dois ajudantes, na mente da moça passam os últimos momentos românticos, quando (meia hora antes) jantava com Zé Carlos, tomando vinho num restaurante de Brasília. Cai terra em seu rosto. Detalhe: mão trêmula com aliança na terra.
"O Monstro do Tchan" (Musical fantástico) - O imenso bundão de Carla Perez rebola e num efeito especial flutua sobre o Pão de Açúcar... que vira uma imensa garrafa luminosa. "Tchan" ecoa nos espaços.
Diante de tanta ficção inverossímil, desisti e voltei para a realidade. É muito mais espetacular.

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