São Paulo, quarta-feira, 30 de julho de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Do Real desencantado à desvalorização imperceptível

ANTÔNIO BARROS DE CASTRO

Na última coluna argumentei que o Plano Real está passando por uma fase de desencantamento. Primeiramente, porque, como não poderia deixar de ser, a estabilidade começa a ser encarada como uma situação normal -aqui, como na Argentina, no Chile e por aí afora. Além disso, porque a redistribuição de renda em favor dos trabalhadores, inicialmente verificada, cessou. A rigor, a massa nominal de salários paga na economia encontra-se virtualmente estagnada, desde meados de 1996.
A cessação do movimento redistributivo e a ameaça de perda, ainda que parcial, da melhoria até recentemente ocorrida são particularmente danosas para o Real. Isso porque o governo insistentemente apregoou que a melhoria verificada na distribuição das rendas era algo inerente ao plano. Mais do que isso, seria, também, parte integrante da ruptura com o passado trazida pelo Real.
Por fim, completaria o desencantamento, o reconhecimento -agora generalizado- de que a taxa de câmbio se encontra sobrevalorizada. Isso significa que não se pode mais atribuir o medíocre desempenho (e perspectivas) da economia brasileira, em termos de crescimento, unicamente aos políticos -pela sua alegada relutância em aprovar as reformas. Mais precisamente, o crescimento encontra-se travado pela política cambial, viga mestra do plano.
Abandonada a tentativa de negação da defasagem cambial, e deixando de lado a "aposta" de que ela seria espontaneamente corrigida pelos aumentos de produtividade, as autoridades perseguem hoje uma estratégia gradualista de correção do problema. Essencialmente, ela consiste na correção do câmbio a taxas ligeiramente superiores à elevação dos preços industriais internos. Como os preços externos ainda estariam sendo majorados por uma inflação de 2,5%, a soma das duas parcelas (diferença entre a correção cambial e o aumento dos preços industriais e inflação externa) implicaria uma desvalorização gradual não desprezível. A ela caberia corrigir, na margem, e imperceptivelmente, a situação.
Numerosas ponderações podem ser feitas à estratégia centrada na desvalorização "imperceptível".
Primeiramente, um reparo de natureza meramente técnica. A inflação externa relevante não pode ser a média das inflações em suas próprias moedas. Não apenas porque as moedas podem estar se valorizando umas em relação às outras (o real acaba de ser valorizado em relação às moedas do Sudeste Asiático), como porque a comparação correta seria dos preços industriais domésticos com os preços industriais no exterior. Nos EUA, por exemplo, os preços industriais têm apresentado ligeira tendência à queda -o que, dadas a revolução tecnológica em curso, e a pressão competitiva asiática, não chega a surpreender.
Uma segunda ressalva consiste em que o tempo requerido para a realização da experiência pode revelar-se longo. Durante esse período, haveria de ter um controle digno de relojoaria, sobre a diferença entre o avanço observado no ponteiro dos preços e o introduzido na correção do câmbio. Que supostos existem aqui (para que a operação dê certo) acerca do conhecimento e controle da realidade por parte dos técnicos por ela responsáveis?
Quanto mais se estenda o período em que a economia apresente um déficit de transações correntes da presente ordem de grandeza (cerca de 4,2% do PIB), maior o esforço de ajustamento a ser feito no futuro. Incidentalmente convém lembrar que a venda de estatais em dólares (ou com compradores nacionais extremamente financiados), presentemente apresentada (unicamente) como solução, também significa compromissos adicionais sob a forma de juros e dividendos a serem pagos no futuro.
Finalmente, convém assinalar que o país pode estar perdendo uma excelente oportunidade para corrigir efetivamente a taxa de câmbio. Para percebê-lo basta ver que ele se encontra numa situação radicalmente diversa daquela enfrentada pelo México, quando de sua desastrada desvalorização: aquele país foi levado pelas circunstâncias a desvalorizar sem reservas e já tendo vendido suas estatais.

Antonio Barros de Castro, 58, professor-titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

Texto Anterior: Colisão de setores ; Dois pesos ; Em pizza ; Passando um pito ; Com etiqueta ; Subindo a verba ; A confirmar ; Mais do que a média; Crescendo a massa; Volta aos básicos; No páreo; Guerra de preços; Dedo no gatilho; Tal pai
Próximo Texto: Preços e polícia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.