São Paulo, quarta-feira, 30 de julho de 1997
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Livro bagunça sociologia fernandohenriquista

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O livro de Gilberto Vasconcellos sobre Fernando Henrique Cardoso ("O Príncipe da Moeda", editora Espaço e Tempo, tel. 021/262-2669) é um verdadeiro raio em céu azul. Céu azul? Com os movimentos de protesto da semana passada, não é que o céu esteja tão azul assim, mas aceitemos a versão do governo. Gilberto Vasconcellos, que ataca a Globo e Fernando Henrique, está com a palavra.
Nas três primeiras páginas encontram-se tantas frases, tantas fulgurações de inteligência, que não resisto a citar um pouco.
"A TV é o agente socializador e organizador da cultura. Fernando Collor foi o primeiro presidente da República eleito pela telenovela. A TV hegemônica no mercado se transformou, durante a década de 80, em partido político. A substituição do príncipe da telenovela pelo fetichismo da moeda (leia-se: o Plano Real) transcorre num país com formação oral, ágrafo, analfabeto e unificado eleitoralmente pela TV."
Se a Rede Globo é o grande alvo do início do livro, logo em seguida leremos uma avaliação não menos dura a respeito de Fernando Henrique.
"O príncipe da moeda ama menos o povo do país do que a mídia. Que se avalie a vacuidade semântica da palavra 'Brasil' em seu discurso: é a mera prosopopéia abstrata de um país sem nação e sem território."
Além do marketing da moeda, há outros gêneros de marketing em jogo, segundo Gilberto Vasconcellos. "O marketing do exílio. Pouco a pouco FHC se tornou o Florestan Fernandes grã-fino, sorridente, afável, sala de visita." O marketing dos famosos "seminários do Capital" nos anos 60, segundo Vasconcellos, "o maior jabaculê das lumières em São Paulo", enquanto, no Rio, "o Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) já havia lido Marx com muito mais proveito para a realidade brasileira".
Cito mais um pouco. "A ambição de FHC é converter a direita civil pós-64 em agente do progresso com justiça social, contando para isso com o apoio do sistema econômico internacional. O objetivo do Plano Real é melhorar a sorte do Brasil, com a condição de este se desnacionalizar por inteiro. A tal globalização determina a própria inoperância em fazer história, ou seja: a inércia política diante do cenário mundial. A filosofia da história dos tucanos é um convite à broxada."
Sobram farpas e ataques para Bresser Pereira, José Serra, José Guilherme Merquior, Roberto Campos. O texto de Gilberto Vasconcellos é um verdadeiro "allegro con brio", que, começando a ler, é difícil parar, e, depois de ler, é difícil de conter numa frase só.
"Um dos traços recorrentes no discurso social-democrata do PSDB é o inegável sentimento de vaidade em estar ao lado do 'novo'. Acontece que o 'novo' em 1994 não passa muitas vezes da repetição do pior passado, isto é, a morbidez dependente do Brasil colônia mimada pelos sucessivos imperialismos, cuja expressão é o mazombismo masoquista que vê o povo brasileiro como menor a ser tutelado."
Como se pode ver, trata-se de um verdadeiro manifesto nacionalista, mas isso não traria muito interesse ao livro de Gilberto Vasconcellos, não fosse a originalidade de sua interpretação do fenômeno FHC/PSDB.
Na verdade, ele reconstrói toda a história brasileira dos últimos 50 anos, a partir de uma perspectiva fascinante. É, para dizer rapidamente, uma perspectiva antipaulista e pró-Getúlio Vargas. Por estranho que possa parecer a nós, paulistas, uspianos, sociólogos etc., dessa perspectiva adotada por Vasconcellos muita coisa passa a fazer sentido.
Toda a sociologia paulista se formou na crítica ao modelo populista inaugurado por Vargas. A esquerda em São Paulo sempre foi contra Brizola, e desde cedo criticava o nacionalismo autoritário do velho PTB.
Bem, diz Vasconcellos, é isso o que explica o impasse intelectual em que vocês estão hoje: a esquerda paulista se divide entre apoiar FHC e apoiar Lula, só que não percebe, mesmo depois do caso Weffort, príncipe do PT que terminou no governo de FHC, que PT e PSDB são farinha do mesmo saco.
A linha de identificação começa no antivarguismo de Armando Salles de Oliveira, de Paulo Duarte e de Mário de Andrade: a USP sempre foi uma espécie de UDN intelectual, marcada pela estatofobia. Essa mesma estatofobia que se dividiu, depois, entre o batismo do PT e o "reformismo" do PSDB. A isso se acrescenta a internacionalização do empresariado paulista. "A 'ciência política' que alcançou o poder (com FHC) se origina da realidade empírica de São Paulo, onde o empresariado industrial esteve sempre conformado à condição de 'sócio menor' das empresas multinacionais."
A luta contra o imperialismo na economia e contra a americanização na cultura brasileira nunca foi o forte dos intelectuais paulistas. Sempre foi tema da sociologia uspiana a crítica ao populismo, a questão democrática e o problema da modernização.
O livro de Gilberto Vasconcellos é, como diria Harold Bloom, uma reinterpretação "forte" da cultura política recente. A pergunta que ele faz é: que tal se vocês se esquecessem da UDN e de Florestan, de FHC e de Weffort, dos Seminários do "Capital" etc., e se lembrassem de Darcy Ribeiro, de Amadeu Amaral, de Gilberto Freyre, e -sobretudo- de Glauber Rocha, que esses sim teorizaram o Brasil?
O humor, o brilho, o tom algo paranóide do livro todo fazem de "O Príncipe da Moeda" leitura ao mesmo tempo obrigatória e agradável. Digo "obrigatória", porque estou na difícil posição do crítico que, no fundo, gostaria de ouvir mais o que outras pessoas têm a dizer a respeito da obra abordada.
Gilberto Vasconcellos não faz uma demonstração sociológica acadêmica de suas teses; trata-se, antes de tudo, de um ato de interpretação, de uma brilhante aposta ensaística, de uma inversão semântica: dar a termos como "populismo", "nacionalismo" e "varguismo", por exemplo, uma conotação elogiosa, e não mais pejorativa.
Há frases e idéias no livro de Vasconcellos que são como verdadeiras revelações. Depois, penso melhor e acho que não; sei, ademais, que prefiro uma democracia internacionalizada a um autoritarismo nacionalista; às vezes me afasto muito do que ele diz, às vezes sinto-me próximo.
Final de artigo bem mineiro para um paulista... mas numa coisa não devo ser ambíguo. Gilberto Vasconcellos, o "Giba", como é conhecido, escolheu deliberadamente assumir uma posição marginal na sociologia brasileira, fez ele próprio uma espécie de auto-exílio em face da intelectualidade dominante. É como se não levasse a sério os que achavam que ele não se levava a sério. Mas, na minha opinião, o livro dele deve ser levado a sério. Certo ou não, bagunça o coreto de nossa maneira de ver o país desde Getúlio. Não é pouco, mesmo que eu ainda fique em dúvida.

PS - Lanço amanhã, a partir das 19h, no Shopping Ática, o livro "Trivial Variado", que reúne textos publicados neste espaço.

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