São Paulo, sexta-feira, 1 de agosto de 1997
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A Sombra das Vossas Almas

Depois do sucesso de "Vergonha dos Pés", a escritora carioca Fernanda Young, 27, lança este mês "A Sombra de Vossas Almas", pela editora Objetiva. Leia a seguir trechos publicados com exclusividade pela Folha do livro "amor ruim" entre uma jovem e um fotógrafo

Os copos se bateram. E quatro olhos se cruzaram. Talvez como asas. Somente na cabeça dela, é claro.

Todo mundo é traumatizado. Mas, se é assim, que eu tivesse tido o meu rabo comido por um primo pederasta. E não ter negada uma piscina Tony

Penou sim, mas para tirar do pensamento uma dúvida que lhe ocorreu enquanto fazia a cirurgia: para onde vão os fetos abortados?

O cara que não fizer isto-pode ter certeza-reencarnará mulher, preta, baixa, banguela e, pasmem, na Alemanha

Quando percebeu que um sangue grosso e escuro escorria por suas pernas, teve certeza de que estava morrendo. Mas tinha se trancado no banheiro há mais de 10 minutos e temeu que Rigel pudesse achar que ela estivesse fazendo coisas piores. Controlou-se. Não podia estar sofrendo uma hemorragia interna. Ou podia? Foi uma batidinha tão besta. Limpou-se o melhor que pôde, aí improvisou um absorvente, enrolando papel higiênico. Não era hora de menstruar. Não era nem mesmo a época para essa calamidade acontecer. Grudou o amontoado de papel na calcinha suja, lavou o rosto, molhou o cabelo. Observou os dentes, mirou-se diretamente nos olhos, quase estremeceu; talvez estivesse febril. Será que estou morrendo? Será que alguém quer me punir? Meu pai? Me deixe em paz, ouviu?! Se tivesse como se matar, só para se livrar destes fantasmas, ela o faria. Naquele instante. Mas alguém bateu na porta. Você está bem? Carina abriu. Não sei. Rigel tinha um copo na mão. O que você está bebendo? Uísque. Me dá um gole. Carina tomou o drinque. Desculpa. Eu também não suporto que bebam do meu copo mas estou bastante nervosa. Vou servir mais dois. Ela sentou numa poltrona, ficou assistindo a Rigel em seu bar. Ótimo este apartamento. É, ele é interessante. Eu gosto de pé-direito alto. Eu também. Identificações, o primeiro passo para uma possível paixão. Rigel entregou a bebida para ela. Devemos propor um brinde? Ao seguro de seu carro, que ele esteja em dia. Carina apoiou: ao seguro do meu carro! Os copos se bateram. E quatro olhos se cruzaram. Talvez como asas. Somente na cabeça dela, é claro.
O álcool, preciosa ajuda em todos os momentos complicados, encaminhou a conduta de Carina. Tanto quanto puderam, esqueceram o acidente e se divertiram como se nada estivesse errado. Ele chegou a colocar Billy Holliday na vitrola; quantos homens não se utilizaram desta voz para trilha sonora dos seus galanteios tolos? E, curioso pela presença instigante de sua visita inusitada. Rigel fazia uma ou outra pergunta sobre a vida dela. As respostas surgiam precisas na mente da -ali- desinibida Carina. Você nunca foi modelo fotográfico? Não. Modelo-manequim-e-atriz é muito cafona. Você não acha? Como eu preciso delas, enquanto elas não entram nessa trip manequim-e-atriz, tudo bem. Eu seria modelo, mas no início do século. Teria as axilas peludas e o corpo volumoso. Eu adoraria que você posasse pra mim. Você vai pintar um retrato meu? Prometo que eu tentarei ser o mais poético possível, mas com a minha Canon. Não. Não? Não sei, então. Melhor assim. Quer mais um drinque? Acho que vou ficar bêbada. Você faz alguma coisa estranha neste estado? Não, apenas ateio fogo às vestes. Só mais uma dose. Ok. Mas depois você não vai me acusar de nada. Você?! Quem teria coragem de te acusar de alguma coisa? Tenho escutado várias reclamações. Duvido. Hum, adoro esta música. Você tem uma boa voz. Ih, acho que devo ficar encabulada. Por quê? Porque sinto que você está me cantando. Estou. Bom, vamos ver os nossos carros e trocar telefones. Já? Eu tenho uma dívida com você, e não é bom se envolver com devedores. O carro? É. Esquece isso. Então, tchau. Não! Você tem que me pagar o que deve! Quando nos encontramos novamente? Vou ligar pra seguradora e aí te ligo. Você conhece um bom mecânico? Não, mulher nenhuma conhece. Se você quiser, eu levo os nossos carros pra consertar. Acho melhor escutar o meu corretor antes. Que mulher desconfiada! Apenas mal-informada, eu não entendo nada de batidas de carro.
Desceram para olhar os estragos. Eram feios. Rigel tentou se manter charmoso. Carina fez uma piada, algo sobre a diferença entre pára-choque e casamento. Nenhum dos dois achou graça. Ela entregou para ele um cartão de visitas. Ele gostou do nome. É judeu polonês, ela esclareceu. Bem, nós nos falamos outro dia. Desculpe, novamente. Isso acontece. Acho melhor eu pegar um táxi e mandar alguém vir buscar o carro depois. Você é que sabe. Por hoje está bom de batidas, estou levemente alta. Foram andando juntos até o portão do edifício. Odeio estas grades. Eu me lembro de quando os edifícios eram livres dessas celas. Ele disse que também se lembrava, e que achava muito feio viver desta forma. O que as pessoas acham, que essas grades nos protegem de quê? Só se for de tigres e leões. Porque qualquer pistola automática apontada pra uma cabeça faz essas porcarias derreterem. Rigel concordou, impressionado com aquela lucidez. Uma mulher de raciocínio rápido. Adoro os judeus. Esperou um táxi aparecer, ficou para ver quando o carro a levou dali. Sentiu que não poderia mais viver sem aquele rosto. Nada porém que dois jantares não curassem. E não esperou chegar até segunda, para receber um possível chamado de Carina -ligou para ela no dia seguinte. Ela escutou o recado na secretária eletrônica. Não devolveu a chamada. Ficou é aborrecida, enciumada. Com ciúmes dela própria. Um mulherengo. Ligar no dia seguinte, feito um cão esfomeado. Cafajeste! Nojento! Mas, mesmo aborrecida, não deixou de estar inteiramente excitada; as emoções em Carina entram nas misturas mais estranhas. Como misturar água com mercúrio. Passou quase todo o domingo experimentando roupas, e se maquiando, e se masturbando. No final do dia, ela estava esgotada. Por pouco, infeliz. Sentia lá dentro uma ansiedade que esmagava seus órgãos. Um ódio por Rigel. E um tremor em sua vagina, inchada de tanto ser tocada com a escova de cabelo.
Na segunda-feira, tentou de tudo para se distrair: não podia ligar para Rigel de jeito nenhum. Devia deixá-lo assim, sob suspense. Já havia conectado um corretor para negociar os consertos na sexta, antes do acidente; precisava apenas dar tempo ao tempo. Ele deveria procurá-la mais uma vez.
A questão é que eu sou um suburbano. Pronto. Um homem que tem um pai que teve seis Brasílias não pode deixar de ser um suburbano. Seis carros chamados Brasília é de uma suburbanice sem precedentes. É carro bom. É carro amplo. Econômico. Um verde-bandeira. Um vermelho. Um verde... verde... nem sei definir aquele verde. Um verde-catarro. Tinha um nome aquele verde. Era chique. Dois brancos e um dourado. Brasília doirada. Mas não há nada de errado em ser suburbano. Apenas você jamais consegue deixar de ser um deles. Reconhecível em qualquer lugar do mundo. Você faz parte da Zona Franca. Você tem aquele galo que muda de cores em cima da sua cabeça. Qual foi o instante em que eu achei que era diferente dos meus pais? Rigel, o aristocrata louro. A bala que matou Kennedy. Eu. Acreditei que não era um suburbano. Sempre olhei de longe aquelas Brasílias, estacionadas na casa do Perdizes. Ah, o orgulho da família: morar em casa. E quais são os traumas que eu tenho? Os dois únicos traumas, tão estúpidos que nem fizeram de mim um neurótico? Um: não ter ganho uma piscina Tony, quando havia espaço suficiente na casa. Não me deram uma piscina de merda, uma merda inflável. Uma porcaria redonda de plástico. Que só molharia os meus tornozelos, mas daria para colocar os submarinos e os soldados para mergulhar. No fim das contas, eu sou um imbecil. Todo mundo é traumatizado. Mas, se é assim, que eu tivesse tido meu rabo comido por um primo pederasta! E não ter negada uma piscina Tony, que merda! O outro trauma é um pouco mais dramático, ok, mas também não faz de mim um superstar da psique. Foi o episódio do bolo de amêndoas: todo aniversário, na porcaria do jardim-de-infância, era comemorado com um bolo que as mães levavam. Obviamente o bolo tinha que ser de chocolate. Não há o menor sentido num bolo que não seja um bolo de chocolate. Num universo complicado como é o das criancinhas, um bolo de chocolate bem-feito por sua mãe é uma honra. E minha mãe chegou com um bolo de amêndoas. O que significa um bolo sem ser de chocolate? Um bolo... Um bolo tem que ter calda de leite moça.
Ela não contou a Rigel que fez um aborto. Teve o sangue-frio de agir sozinha. E, se as sequelas já eram inevitáveis pelo ato em si, o segredo desta dor machucou-a ainda mais. Foi preciso muita força para driblar a lei, o próprio corpo, e o responsável condutor daquele espermatozóide olímpico, Rigel. Mas Carina não podia comprometer tudo com uma gravidez indesejada. Não tinha previsto que em algum instante, como fazem todos os casais apaixonados, eles deixariam de lado a camisinha. Não calculou tabela alguma, nem tomou nada que contivesse a natureza, apenas trepou e trepou. Dois meses copulando. Colocando em prática as técnicas que conhecia, inventando outras, aprendendo. Descobriu que lamber a costura que começa bem depois do pai e termina dividindo o saco é um delírio para os homens. Não temeu pesquisar se ele sentia ou não prazer ao ser tocado no ânus. E concluiu que sim. Através de um corpo masculino conheceu todos os homens do mundo. E conheceu o seu corpo, também. Era o tempo do descacete. De transar. Beber. Comer inhoquete, uma massa horrorosa que pediam pelo telefone, eleita pelos dois o prato melhor do mundo. Era a necessidade de energia. A macaquice inevitável do ser humano, grunhindo por todos os poros. Era mulher conquistando homem pelo ponto mais frágil dele: seu sexo. Enfim, era tudo isso, menos a hora de um feto ser gerado.
As chances de Carina aplicar o manjadíssimo golpe do bucho -a mais baixa arma que uma mulher tem a seu favor- eram muitas. Mas não naquele momento inicial; seria apenas um recurso distante. O último. É o tipo de método que está sempre no fim da rosca. Como aquele piloto, da Segunda Guerra, que teve o avião atingido e se viu obrigado a pular, mas não havia pára-quedas. Antes de se lançar para a morte, ele soltou uma bomba. E só então pulou. Era a única coisa a fazer: jogar uma bomba e depois se jogar. É isso: engravidar e depois exigir o casamento. O aviador teve uma sorte rara, a bomba produziu uma espécie de colchão de ar que amaciou a queda, e ele sobreviveu com algumas fraturas. A probabilidade de um golpe de bucho ter um final feliz é tão pequena quanto a de não morrer pulando de um avião sem pára-quedas. Carina estaria disposta a correr este risco, uma vez não tendo nada a perder. Mas nunca no início da paixão. Isso é coisa para findar um noivado eterno. Para deixar de continuar a amante. Conseguir pensão de um jogador de futebol. Definir uma relação sem definição. Fazer chantagem e ganhar uma boa bolada. Não cabia num namoro perfeito, de dois meses apenas. Não seria desta maneira que Carina ia conseguir se casar. Conseguiria, sim, o dinheiro para o aborto e a antipatia culpada do quase futuro papai. E não era isso que ela desejava. É claro que não. Eu quero ser pedida em casamento. Quero que ele compre alianças. Quero que ele me queira vestida de noiva. Quero ter foto da cerimônia num porta-retratos bem na entrada do apartamento. Quero que ele queira um filho meu. E querendo isso tudo foi até uma clínica e deixou que lhe arrancassem um troço desse tamaninho, que um dia lhe chamaria de mamãe e lhe daria muitos problemas, porém poderia fazê-la -quem sabe?- feliz. Não se sentiu culpada de forma racional. Penou sim, mas para tirar do pensamento uma dúvida que lhe ocorreu enquanto fazia a cirurgia: para onde vão os fetos abortados? Acabou substituindo uma resposta por esta mesma pergunta, só que a respeito de uma outra coisa que muito se perde: guarda-chuvas.
Não trouxe nenhum traço daquilo que havia acabado de fazer. Era Carina. Bem vestida e, digamos, segura de si. Ficou desapontada. Queria em seu íntimo sofrer, passar mal, precisar de Rigel. E então explicar que fez tudo aquilo por acreditar ser uma responsabilidade feminina. Ela não era uma camponesa. Não. Sou uma mulher adulta e esclarecida, cabem a mim os cuidados necessários. Eu não iria jamais incomodar você com um deslize meu. Acho esta situação por demais constrangedora e prefiro esquecê-la. Mas nenhuma destas frases foi dita. Sua saúde, fora uma ou outra crise nervosa, era boa. E estaria preparada para sacar desse repertório somente numa emergência. Por isso, torcia para que algo desse errado. Uma hemorragiazinha. Um desmaiozinho. Uma ligação no meio da madrugada. Pois homens não gostam de mulheres totalmente independentes. Querem se sentir úteis. Querem pagar a conta do restaurante; senão do que vale ser macho? Gostam quando a mulher sente medo e procura seus ombros másculos e protetores. A primeira dica de que um homem é um porcaria é quando não faz questão de carregar as malas. E tem que fazê-lo sem reclamar. Quase que adorando. Mostrando que tem braços fortes. Se um homem não é capaz de carregar malas, poderá até entregar sua mulher aos ladrões, em vez de defendê-la deles. Tem certas coisas que, ao menos na nossa cultura ocidental, são eficazes informações do caráter masculino. Um exemplo é o sujeito que transa com uma moça e não liga nunca mais. Este é o escroto execrável. Digno de forca em qualquer lugar do mundo. Pode ser até que você não deseje vê-lo de novo. Inclusive você quer esquecer o que aconteceu. Mas não poderá jamais ficar satisfeita com o sumiço desse otário. Um recadinho na secretária eletrônica e um adeus. O cara que não fizer isto -pode ter certeza- reencarnará mulher, preta, baixa, banguela e, pasmem, na Alemanha. Os homens são tão tolos. Só mesmo tolos que as mulheres que não sabem disso.
Nasci da década de 70. Mais ainda, eu nasci em 70. 1970. Diz minha mãe que eu fiquei desse jeito por causa dos fogos da Copa do Mundo. Não havia quem me fizesse dormir. E, realmente, foi só há bem pouco tempo que dormir se tornou um hábito normal para mim. Aliás, nem tão normal assim: depois de todos esses anos insone, agora dei para dormir demais.
Voltemos ao meu nascimento. Dizem que fui um bebê lindo. Tinha tanto cabelo que já entrei no mundo de corte Chanel. Mas era chata a dar com um pau. Chorava o dia inteiro -eram os fogos, os gols, os berros- e a noite também -isso era chatice mesmo. Eu dei tanto trabalho para minha mãe que ela não consegue se recordar da infância da minha irmã, que, diferente de mim, era um amor. Como se vê, venci pela chatice. Mas também não é esse o assunto em pauta. A questão é a década de 70. A época mais cafona de todos os tempos. Não só deste século. Acredito que em cafonice 70 só se compara à era romana, com Júlio César de vestidinho de cetim com um ombro nu, sandálias douradas com fitas transpassadas até as batatas das pernas, cachinhos em forma de vírgula na testa, com o arremate de louros na cabeça. "Ah, mas não devia ser assim." Não devia, o cacete -eu acredito em Hollywood! E, observando bem, a década de 70 tem uma coisa meio Júlio César: se usou muita roupa com uma manga só. Sandálias douradas. Cetim. E mais: rabo-de-cavalo no lado da cabeça. Calça boca-de-sino. Existe no mundo coisa mais feia? Existe. Cabelo black-power. Não há nada mais sem sentido do que aquele corte: redondo, volumoso, ocupando espaço no universo, espaço inutilmente ocupado por cabelo. Já no finalzinho de 70 veio a coisa da discoteca, que é um movimento em ode ao monstruoso. Fora algumas músicas. No mais, o que eram aqueles collants de lycra? Hein? O que foi aquilo que fizeram com a Sônia Braga em "Dancing Days"? E não é porque o tempo passou e agora é cafona. Não. Isso é critério de avaliação para idiotas. É porque por alguma explicação qualquer -conjunção astral, cegueira coletiva, surto esquizóide- o mundo inteiro elegeu o mau gosto como meta de comportamento. Lembro-me de um reveillon em que eu simplesmente não acreditei na roupa da minha mãe. Era uma coisa assim, inenarrável, eu jamais poderei descrever com perfeição aquela coleção de equívocos. Babados, bordados, drapeados... Todas as técnicas de alinhavo se encontravam naquele metro quadrado. É só o que eu posso dizer a respeito daquilo.

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