São Paulo, sexta-feira, 1 de agosto de 1997 |
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Viagem em torno de Otto Maria Carpeaux
CARLOS HEITOR CONY
Aceitou-nos tal como somos, repartiu nossas misérias, sofreu nossas desditas -e sofreu tanto que, já beirando os 70 anos, submeteu-se a um interrogatório policial motivado por um artigo que escreveu: "FMI - Fome e Miséria Internacionais". Por várias vezes esteve para ser extraditado pelo regime militar. Nascido em Viena (1900), perdoou quase tudo à velha Europa e à velha Áustria que, estranhamente, ele continuava a amar, mas à sua maneira. Só não perdoou a anexação, o Anschluss de 1938, quando as elites políticas e militares se incorporaram ao Reich de Hitler. A história de sua vinda para o Brasil foi marcada pela obstinada vocação de liberdade, pela suicida fidelidade aos ideais que formou o seu patrimônio intelectual. Estudou física e matemática, mas abandonou as ciências exatas para se dedicar à Estética (foi aluno de Croce, na Itália). Com o pai aprendeu música (preferia ler partituras a ouvir discos), dedicou-se à história do pensamento -e foi por aí, acredito, que ele chegou à literatura e à filosofia. Fica impossível falar de Carpeaux sem usar o lugar comum: "enciclopédico". A expressão o irritava nos outros e, sobretudo, se aplicada a ele próprio. Carpeaux não era uma soma ou uma sucessão bem paginada de conhecimentos gerais. A leitura de sua monumental "História da Literatura Ocidental" (oito volumes) e "Uma Nova História da Música" revelam a estrutura e a dinâmica de seu pensamento. Ele escrevia ensaios como alguns escritores fazem romances ou poemas, na base de palavra puxa palavra, idéia puxa idéia. A guerra de 1939 dividiu-lhe a vida em duas -e ele deixou seus livros e seu passado em várias partes da Europa. Dos livros sempre sentiu saudades, principalmente de uma edição grosseira e expurgada ("ad usum Delphini") na qual leu pela primeira vez "A Divina Comédia", dedicando-lhe um de seus melhores ensaios. Carpeaux só soube que vinha para o Brasil quando já estava no navio que o traria para cá. Procurou informar-se sobre o país. Leu o que podia: os livros da biblioteca de bordo. Aprendeu pouco. Somando tudo, ele anteviu o Brasil no qual iria viver o resto da vida. Imaginou que teríamos músicos como Carlos Gomes e Villa-Lobos, livros como "Os Sertões" e "Por Que Me Ufano do Meu País", políticos como Rui Barbosa e Vargas, poetas como Castro Alves e Gonçalves Dias. Uma única surpresa: Machado de Assis. Carpeaux gostava de citar a frase que revelou, para ele, a infinidade do universo machadiano: "Naquele tempo já existiam pessoas velhas, mas poucas". No final de 1977, deu um giro pela Europa. Não pretendia ir a Viena mas as conexões aéreas são relativamente imprevistas, e ele foi parar em Munique. De lá, seriam apenas sete horas pelo trem que corta a bela paisagem pré-alpina. Por que não? O filho pródigo voltou, "displaced person" na cidade em que nasceu, que amou e com a qual não mais se identificou. Sentindo-se um estrangeiro, passeou em silêncio pelas ruas, procurou os cafés, num deles Trotsky fazia ponto. No regresso, escreveu seu último artigo. Falou mal do Schonbrunn e dos italianos que o império austríaco importou para embelezar a cidade. Afinal, Viena tinha um Lukas Von Hildebrandt, tão barroco quanto Bernini ou Borromini. Quando soube que eu iria a Viena, tentou convencer-me a ficar em Roma. Para quem o conheceu, a discriminação não é surpresa. Ele tinha o "dom da fúria", como acentuou José Lino Grunewald em carinhoso artigo. Carpeaux gostava de citar Macbeth: "A tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing". Em Viena, pensei em enviar-lhe um cartão cheio de som e fúria, mas já estava de regresso marcado e preferi reclamar pessoalmente. Cheguei atrasado. Ao beijar seu caixão -sincero caixão, despojado de qualquer símbolo, cruz ou flor- me senti mais sozinho no mundo. Ele se transformara em lição, memória e saudade. Texto Anterior: Os destaques do Anima Mundi Próximo Texto: Sertão vira pop no 'Baile Perfumado' Índice |
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