São Paulo, sexta-feira, 1 de agosto de 1997
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O chupa-cabra

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO

Um noticiário de televisão, na sexta-feira passada, exibiu manifestação realizada em Brasília por familiares de militares, na qual ostentavam uma faixa com os dizeres: "FHC: o chupa-cabra dos servidores civis e militares". Detrás dessa inscrição jocosa há, entretanto, algo de muito sério.
Há a sensação, que vai se disseminando, de que largas camadas da população estão tendo suas energias e sua vitalidade econômica progressivamente chupadas pelo atual governo, ao ponto de se tornarem exangues.
Entre elas não se incluem apenas os servidores mencionados no cartaz referido, mas, ainda com maior razão, os hoje denominados sem-terra, sem-teto, sem-trabalho ou simplesmente sem meios aceitáveis de sobrevivência.
A Folha (24/7), em chamada de primeira página, exibia o seguinte título: "Salário dos mais pobres diminui 15%". E esclarecia abaixo que, entre janeiro e maio, o rendimento máximo dos 10% da população com menor renda na Região Metropolitana de São Paulo caiu de R$ 163,00 para R$ 151,00.
Se uma renda mensal de R$ 163,00 já é para causar estupor -levando naturalmente à pergunta: "Como pode alguém sobreviver com tão pouco?"-, que dizer então quando, ao invés de essa renda elevar-se, em curtos cinco meses diminui em tal proporção? E que atenção está sendo dada ao dispositivo constitucional que arrola entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (artigo 3º, III)?
Parece que se está vivendo em dois Brasis paralelos, incomunicáveis. Um, nominal, enfunado pela mídia, em que o governo se pavoneia e se articula com um Congresso sempre submisso e que assiste passivo ao defluxo de medidas provisórias que o emascularam e transformaram o país, na realidade, em uma ditadura do Executivo.
Sem embargo, está tudo sob ar de aparente normalidade, avalizada pela imprensa, pelo rádio e pela TV. Discutem-se reformas aparatosas, mas das quais o único efeito previsível é o agravamento das condições de vida dos que se encontram da metade da pirâmide social para baixo. Bons exemplos disso são a reforma da Previdência e a relativa aos servidores públicos.
A tranquilidade desse mundo de faz-de-conta só é entrecortada por CPIs, que terminam em pizza. Ou, às vezes, pelo destempero verbal de um auxiliar do governo, que -embora por si mesmo politicamente irrelevante e um perfeito desconhecido até sua posse (só se tinha, eventualmente, a discreta notícia: foi tesoureiro da campanha...)-, mesmo sem tradição política que o credencie como arguto analista, a imprensa gulosamente procura, à cata de alguma nova incontinência, propiciadora de outro "entretenimento" que renda manchetes, certa de que, diga ele o que disser, pelo poder que detém sobre o presidente, tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes.
Em suma: um mundo artificial, de futilidades, se cotejado com outro Brasil, o Brasil real, aquele que o oficialismo político e social teima em subestimar, como se existira um complô de silêncio para ignorá-lo.
Esse outro Brasil é o das greves das polícias Civil e Militar, das marchas dos segmentos mais modestos da população, cada vez mais desamparados e progressivamente onerados por uma política satisfatória apenas para o capital internacional e para as parcelas ínfimas que desfrutam de alta renda.
Esse outro Brasil é o do desemprego e do subemprego endêmicos, da miséria crescente, da criminalidade galopante, dos moradores de rua, dos menores abandonados e da prostituição infantil, continuamente denunciada por organismos internacionais.
É certo que, em sua maior parte, são males crônicos não iniciados no atual governo, mas é certo também que este, longe de concorrer para minorá-los, não só os tem desconhecido como visivelmente agravado.
A sociedade real, a que congrega a esmagadora maioria do povo, já está exibindo sinais claros de descontentamento e impaciência, que podem, inclusive, vir a se tornar perigosos.
Assim, se Fernando Henrique Cardoso, com o descortino que o treinamento profissional de sociólogo lhe deu, pretende fortalecer as instituições -já modeladas em função de suas conveniências políticas- e não deseja que se lhe consagre o apodo de "chupa-cabra" da maioria desfavorecida, que os mencionados manifestantes lhe atribuíram, está na hora de acordar e mudar os rumos que tem imprimido, pois se começa a vislumbrar que "o rei está nu".

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