São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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Caricatura das vanguardas

Uma tradução inédita de "Moravagine", por Alexandre Eulalio

DA REDAÇÃO

Leia a seguir trechos do romance "Moravagine", de Cendrars, em tradução feita por Alexandre Eulálio. A tradução ficou incompleta devido à morte do crítico, em 1988, mas fará parte da reedição pela Edusp de "A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars", de Eulálio.
"Moravagine" trata da relação entre um médico e seu paciente neurótico, que dá nome ao livro.
A idéia de Alexandre Eulálio, após terminar a tradução do romance, era a de escrever um ensaio em que tentaria aproximar Moravagine e Febrônio Índio do Brasil, um criminoso que assustou o Rio de Janeiro durante os anos 20.
Cendrars visitou Febrônio na prisão durante sua estada no Brasil. Dele, segundo Eulálio, teria vindo a inspiração para o escritor suíço criar seu Moravagine.
Em anotações encontradas à margem das poucas páginas que traduziu, o crítico comenta que em " 'Moravagine' há uma espécie de paródia da evolução patológica do herói, que é uma caricatura dos últimos avanguardismos: cubismo, primitivismo, negrismo".

BLAISE CENDRARS
quando se viajou muito através dos países, dos livros e dos homens, sente-se às vezes a necessidade de parar um dia...
Vivi durante 12 anos em 4, rue de Savoie, Paris 6ème.; mas sempre tive e tenho ainda diversos outros domicílios na França e no Estrangeiro. O 4 de rue de Savoie me servia de despejo: lá ia, entre dois trens, entre dois navios, esvaziar minhas malas ou deixar uma pessoa ou consultar um volume. Sempre eu repartia o mais depressa possível, a cabeça cheia, mas o coração e as mãos livres...
Na Isle-de-France existe um velho campanário. Ao pé da torre, uma casinha. Nessa casa, um sótão fechado a chave. Atrás da porta fechada a chave, certa mala com fundo duplo. No compartimento secreto está uma seringa Pravaz; no interior propriamente dito, manuscritos. Seringa, manuscritos e mala são pertences de um prisioneiro, de um prisioneiro espanhol; mas não sou eu a vítima do célebre conto do prisioneiro espanhol.
A seringa está gasta. Os manuscritos em estado lamentável. São as obras de Moravagine. Mas a consignação me foi feita por... por... pelo prisioneiro espanhol, raios, e é preciso não pronunciar o nome dele...
Não vou continuar este Prefácio, pois o presente volume é ele mesmo um prefácio, prefácio demasiado longo, às "Obras Completas" de Moravagine que hei de editar algum dia, mas ainda não tive tempo de pôr em ordem. Eis o motivo pelo qual os manuscritos continuarão na mala com o fundo duplo, a mala no sótão, o sótão fechado a chave, na casinha ao pé do campanário, na pequena povoação da Isle-de-France durante todo o tempo que eu, Blaise Cendrars, estiver girando pelo mundo afora por entre países, livros e homens.
Países existem muitos. Livros, este aqui é um deles. Homens conheço tantos e mais ainda e não me canso de os conhecer; mas jamais conheci alguém tão resistente e tão conforme ao meu coração do que este pobre moço que me endereçou a seguinte carta, na primavera passada. (Eu estava no Brasil, numa fazenda, em Santa Veridiana, e quando li essa carta tudo escureceu em torno de mim, o céu azul dos trópicos, a terra roxa da América do Sul, e a vida que levava nessa natureza livre, na companhia do meu cavalo Canário e do meu cachorro Sandy pareceu-me de repente inconsequente e mesquinha, e me apressei a voltar para a Europa. Um homem acabava de morrer, entre quatro paredes, ao amanhecer, uma coleira de ferro em torno do pescoço, um garrote, a língua pendente... como numa estampa de Goya...) (...)
I - O espírito de uma época
a) Internato
Em 1900, eu terminava meu curso de medicina. Deixei Paris no mês de agosto a fim de me dirigir ao sanatório de Waldensee, próximo a Berna, na Suíça. Meu mestre e amigo, o célebre sifilógrafo D'Entraigues, havia-me calorosamente recomendado ao dr. Stein, diretor junto ao qual eu deveria funcionar como primeiro-assistente.
Stein e o seu estabelecimento eram então célebres.
Saído de fresco da Faculdade e desfrutando de alguma notoriedade promissora que a minha tese sobre o quimismo das doenças do inconsciente me havia angariado junto aos especialistas, estava impaciente para atirar longe o jugo da Escola e desferir um golpe brilhante no ensino oficial.
Todos os médicos moços passaram por isso. (...)
A histeria, a Grande Histeria, estava então na moda nos ambientes médicos. Após os trabalhos preliminares das Escolas de Montpellier e da Salpêtrière, as quais não tinham feito, por assim dizer, mais que determinar, situar o objeto do seu estudo, diversos sábios estrangeiros tinham se apropriado da questão, de modo muito especial o austríaco Freud, tendo-a ampliado, aprofundado, lançado, extraído do seu domínio puramente experimental e clínico para torná-la uma espécie de patafísica da patologia social, religiosa e artística, onde se tratava menos de chegar a conhecer a climatérica de tal idéia-força nascida na região mais longínqua da consciência e a determinar a simultaneidade do "autovibrismo" das sensações observadas no sujeito, do que criar, forjar dos pés à cabeça uma simbólica sentimental, dita racional, dos lapsos adquiridos ou inatos do inconsciente, espécie de chave dos sonhos para uso de psiquiatras, tal qual aquela que Freud havia codificado nas suas análises sobre a psicanálise e que o doutor Stein punha pela primeira vez em prática no seu tão frequentado sanatório de Waldensee.
Enquanto capítulo especial de uma filosofia geral, a patogenia não havia sido ainda tentada. Na minha opinião ela não havia sido nunca abordada de maneira estritamente científica, isto é, objetivamente, amoralmente, intelectualmente. (...)
b) Sanatório internacional
(...) À meia encosta de uma colina baixa dominando o lago de M... abriam-se ao sol as seiscentas janelas do Kurhaus. Lá, tudo era calculado para a fruição de um voluptuoso conforto. Tudo aí era novo, brilhante, de gosto duvidoso mas agradável. Uma inteira liberdade era permitida às idas e vindas dos hóspedes do sanatório. Os pensionários podiam excursionar em torno e ir mesmo a Berna e Interlaken. As estradas eram palmilhadas por casais estranhos e distintos escoltados à distância por campônios sensaborões, cujas formas hercúleas sobressaíam debaixo do paletó ligeiro de alpaca. Um parque de diversos hectares rodeava o Instituto, conspargido de pequenas vilas luxuosas onde às vezes se celebravam, sob o olhar impávido dos guardas, espantosas orgias e dramas obscuros. Uma engrenagem requintada, niquelada, delicada tinha conseguido penetrar nessa arca do vício. Domesticada, pouco arisca, macia e silenciosa, ela ia de um a outro, se dobrava, se adaptava ao menor capricho, acariciava a última necessidade dos sentidos. Ela tornava a vida e as funções tão fáceis, tão confortáveis e operava com uma tal sedução que muitos dos "doentes" não queriam mais abandonar a pousada, fascinados como estavam de serem estimulados e mantidos por ela.
Mas, por detrás desta fachada brilhante, por detrás dos vidros despolidos desta estufa onde os super-herdeiros da vida floresciam, sentia-se por todos os lados a disciplina trágica, o duro horário que governa o dia dos desequilibrados e dos loucos como uma geometria. Ela se traía na ordem flagrante dos jardins, na disposição sistemática dos aposentos, na regularidade particular das refeições, nas mil e uma distrações oferecidas sensualmente à vista; ela penetrava o ar como um perfume sutil e traidor, um perfume de espionagem. Nada podia resistir a este ambiente, e se tornava subrepticiamente presa dele; isso impregnava a vida, a alma, o cérebro, o coração e desagregava rapidamente a mais rija das vontades.
No fundo do parque levantavam-se as construções encarnadas de uma fazenda inglesa com a aparência de cavalariça de corridas. Era aí que, em baias muito ascéticas e envolvidas de cuidados prodigiosos, os incuráveis, milionários, esperavam lentamente pela morte. (...)
Eu teria gostado de abrir todas as gaiolas, todas as jaulas, todas as prisões, hospícios de loucos, ver as grandes feras livres, estudar o desenvolvimento de uma vida humana inesperada. E se abandonei em seguida os meus planos maquiavélicos de combate e de arrivismo, se me desviei da minha carreira, se deixei para mais tarde os grandes livros por fazer, se renunciei deliberadamente à glória que meus primeiros trabalhos já prometiam, é que encontrei durante o meu serviço da fazenda inglesa o indivíduo soberbo que me devia fazer assistir a um tal espetáculo de revolução e de transformação, à reviravolta de todos os valores sociais, e da vida.
Eu fiz evadir um incurável.
Mas isto é uma outra história, a história de uma amizade.

Tradução de ALEXANDRE EULALIO.

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