São Paulo, segunda-feira, 4 de agosto de 1997
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'Graças a Deus houve a ocupação da terra', diz bispo

ABNOR GONDIM
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O próximo presidente da CPT (Comissão Pastoral de Terra), d. Tomás Balduíno, 74, afirmou que tanto o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) como o governo precisam fazer concessões para resolver conflitos relacionados à reforma agrária.
Bispo da cidade de Goiás desde 1967, d. Tomás assume o cargo na quarta-feira, em reunião da CPT, órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em Goiânia.
Ele, que considera as invasões de terra um direito moral, mantém "boas relações" com o ministro Raul Jungmann (Política Fundiária). Para homenagear o bispo, Jungmann visitou em julho a cidade de Goiás, onde lançou o recadastramento nacional dos imóveis rurais com imagens de satélites.
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Folha - Por que seu nome foi escolhido para o cargo?
D. Tomás Balduíno - Certamente, querem renovar. D. Orlando Dotti está no segundo mandato. Eu sou muito ligado ao Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e à CPT desde que essas entidades foram fundadas, em 1973 e 1975.
Folha - Como o sr. vê a situação do governo em relação à reforma agrária?
D. Tomás - O governo parece que não assimila oposição nem divergência nem o que ele chama de agitação. O movimento dos sem-terra tem plena consciência da necessidade de mudança para que aconteça a reforma agrária.
A reforma agrária não é uma ilha dentro de um sistema. É preciso que haja uma mudança de igualdade, de atenção ao social. O governo mal aceita oposição e muito menos mobilização para uma transformação radical e profunda.
Folha - Isso é ruim?
D. Tomás - Acho antidemocrático. Democracia plena supõe a convivência até com a divergência.
Folha - Por que o sr. disse que Jungmann estava no caminho certo ao lançar o programa de recadastramento de imóveis rurais?
D. Tomás - Eu falei da criação daquele programa de recadastramento como um instrumento para tentar desobstruir caminhos que levem à reforma agrária. Os caminhos estão obstruídos de uma forma legal. O maior deles é a Constituição de 88, que proibiu desapropriação em terras produtivas. O ministro está certo buscando retirar esses obstáculos.
Eu protestei com relação à medida provisória sobre reforma agrária, editada em junho passado, que proibiu a vistoria de terras.
Folha - De terras invadidas?
D. Tomás - De terras ocupadas. Isso é favorecer ainda mais o latifúndio. Como a reforma agrária vem sendo feita a reboque dos sem-terra, o governo quer impedir as ocupações para pressionar.
Folha - É possível haver bom relacionamento com o governo ou com o ministro Jungmann?
D. Tomás - Esse bom relacionamento já está acontecendo. Pessoalmente, eu tenho bom relacionamento com o ministro e com dirigentes nacionais do Incra e da superintendência em Goiás.
Isso me dá a inteira liberdade de discordar. Pode haver avanços no Ministério de Política Fundiária, mas isso contradiz uma posição global do governo.
Folha - O sr. não acha que o ministro fica enfraquecido quando o MST pede sua demissão?
D. Tomás - Isso não deixa de ser recrudescimento da oposição. Eu admito que, no processo democrático, essa atitude agressiva do MST possa servir até para uma correção de rota do governo. Como o inverso também pode acontecer, e o MST terá de fazer concessões diante de um impasse.
Folha - A posição do MST em relação ao ministro ajuda ou atrapalha a reforma agrária?
D. Tomás - Essa radicalização pode atrapalhar de uma maneira imediata, mas não no processo global.
Folha - Como o sr. encarou o apoio do MST a setores urbanos e aos policiais em greve?
D. Tomás - Se fosse só o problema da terra, eu acho que bastaria atender aos trabalhadores rurais. Mas o objetivo do MST é outro Brasil, uma pátria diferente para a grande maioria dos brasileiros.
Folha - O Grito dos Excluídos no dia Sete de Setembro, promovido pela Igreja Católica e o MST, mostra que a igreja está retomando uma atuação política?
D. Tomás - A igreja é misturada. Há a mobilização das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), que defendem uma atuação mais política. Pode ser que elas não representem a tendência majoritária da igreja. Há também tendências que procuram atuar mais para o lado religioso.
Folha - Qual sua opinião sobre o presidente da CNBB, d. Lucas Moreira Neves, ter se manifestado contra invasão de terras?
D. Tomás - Há uma divergência na igreja. O episcopado brasileiro elaborou documentos de apoio não só à atitude atual dos sem-terra, como também fundamentada na história da terra no país. Não fosse assim, os negros, os mestiços teriam morrido. Faz parte da nossa história. Graças a Deus houve a ocupação da terra. Não se pode fechar os olhos para o roubo, o grande roubo que gerou o latifúndio, a grilagem, o massacre e a destruição de índios. Se condenamos a ocupação, então vamos canonizar o lado oposto, o latifúndio.
Folha - Sua defesa da desapropriação de terra produtiva não pode aumentar a violência?
D. Tomás - Essa violência no campo já vem acontecendo desde o Brasil Colônia. A atitude do governo, ao concentrar sua mira contra a ocupação feita pelos pobres, é um fechar de olhos sobre a grande injustiça que significou o latifúndio.
Folha - Falando assim, o sr. não acha que está estimulando a invasão de terras?
D. Tomás - E você acha que a ocupação de terras é um crime?
Folha - O ministro Iris Rezende acha.
D. Tomás - Isso foi um caminho histórico que permitiu que o nosso povo tivesse acesso à terra. Não foi terra caída do céu.
Folha - O sr. não teme que isso possa ser considerado como uma incitação ao crime?
D. Tomás - Não sei qual é o entendimento do ministro. Eu defendo a coisa assim: primeiro, é um processo histórico; segundo, é um direito moral. São Tomás de Aquino diz que, quando alguém está com fome, o bem se torna comum. Ele é do século 13. Hoje, ele iria morrer na fogueira da inquisição do neoliberalismo. Na região onde moro, há 40 assentamentos e pré-assentamentos. Nenhum foi obtido sem ocupação.
Folha - O engajamento dos religiosos na reforma agrária não pode levar Fernando Henrique Cardoso a condenar os padres que cometem excessos, como fez na visita ao papa, em fevereiro?
D. Tomás - Aquela primeira investida deu no que deu. Em nada. Ele se expõe ao ridículo.

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