São Paulo, segunda-feira, 4 de agosto de 1997
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Desprezar Sibelius é injustiça e perda

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O pior compositor do mundo", na opinião de René Leibowitz. A frase soa tão mais engraçada porque se aplicaria, com maior justiça, ao próprio Leibowitz, autor de cinco óperas esquecidas e de "Marijuana" (1960).
Mas Leibowitz, como disseminador das idéias de Schoenberg, foi um dos nomes mais influentes da crítica musical no período do pós-guerra e seu julgamento tem um caráter no mínimo histórico.
E o fato é que, até hoje, Sibelius (1865-1957) ainda não é ouvido a sério nos círculos bem pensantes da musicologia.
Entre seus defensores está o pianista Glenn Gould, para quem Sibelius é "um compositor apaixonado, mas anti-sensual -precisamente a dicotomia que me atrai (...) e que faz de suas partituras, com suas ramificações incessantes, um pano de fundo perfeito para a regularidade transcendental do isolamento".
No Brasil, até onde eu saiba, nesses últimos anos só Marcelo Coelho, colunista da Folha, teve a coragem de falar bem de Sibelius. Agora que o século está quase no fim e os ânimos ficaram um pouco mais calmos, a própria questão do "progresso" parece menos importante.
Richard Strauss foi reabilitado (como compositor, não como cidadão) por ninguém menos do que Edward Said, que o aproxima de Messiaen, como um mestre da música não-linear, digressiva, extática ("Elaborações Musicais").
Personalidade musical
A hora de Sibelius decerto não está longe. Menos complexo do que Strauss, menos popular do que Rachmaninov (outro mestre à margem da vanguarda), ele é, ainda assim, uma das personalidades musicais dessa época, dono de uma música só sua e uma imaginação própria.
Em retrospecto, depois das lições de compositores muito diferentes, o pensamento musical de Sibelius parece ter se tornado mais interessante, mais próximo de preocupações atuais.
É um bom momento, então, para escutar as "Quatro Legendas, op. 22", no novo CD da Orquestra Sinfônica de Gotemburgo, regida por Neeme Jãrvi.
A fantasia sinfônica "A Filha de Pohjola, op. 49" partilha com as legendas uma capacidade extraordinária de prolongar a música, como se a suspensão em si fosse a razão de ser dessa arte "apaixonada e anti-sensual".
As cordas em semicolcheias cerradas, os "corais" nos metais, o contraponto rápido nas madeiras: tudo isto é a marca registrada de um compositor estranho, em muitos pontos mais melancólico do que apaixonado; um dos poucos mestres do século que as platéias, sabiamente, jamais abandonaram.
O regente estoniano Neeme Jãrvi toca Sibelius com a leveza e transparência da água da Finlândia. Falta a ele alguma coisa da aguardente que o compositor tanto gostava, e a quem dedicou, em silêncio, os últimos 30 de seus 92 anos de vida. É um tanto irônico ter de brigar por Sibelius, a essa altura das coisas. Mas a música do século 20 é muito mais variada e rica do que argumentam até os seus maiores defensores -os quixotes da música contemporânea propriamente dita. Desprezar Sibelius é uma injustiça e uma perda.
Daqui a um século vai fazer pouca diferença saber se ele estava 20 anos à frente ou atrás do seu tempo; e nem mesmo a idéia de que o atraso seria um elemento intrínseco dessa música parece resistir a uma nova audição hoje.
Com ouvidos livres, já estamos prontos para reconhecer, nas fantasias do finlandês, a antecipação involuntária das nossas e a repetição do que outros vão fazer no futuro.

Disco: The Swan of Tuonela Four Legends, Pohjola's Daughter, Night Ride and Sunrise
Artista: Jean Sibelius
Com: Gothenburg Symphony Orchestra (regência de Neeme Jãrvi)
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 22 (em média)

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