São Paulo, quarta-feira, 6 de agosto de 1997
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Só o dinheiro privado conserta a polícia

ELIO GASPARI

O presidente Fernando Henrique Cardoso teve uma grande idéia quando resolveu empurrar com a barriga o pacote de medidas destinadas a reformular o quadro policial do país. Armava-se um circo de amadores que, no máximo, contribuiria para aumentar a confusão.
Em quase três anos de mandato, o governo fez nada nessa área. Quando estourou a crise mineira, o Planalto fez de conta que o problema era do governador Eduardo Azeredo. Depois da mazorca alagoana, o próprio FFHH chegou a dizer que o abacaxi não era dele, mas dos governadores e do ministro Pedro Malan (tremenda injustiça, porque Malan nada tem a ver com essa história). Trata-se de uma questão na qual se avança mais pela paciência do que pela alternância de silêncios e estrondos. Se uma discussão dessas levar um ano, não é muito.
A relativa pacificação dos quartéis serviu para mostrar que a bagunça está agora no Ministério da Justiça. Lá brilham duas estrelas, a do ministro Iris Rezende e a do secretário nacional de Direitos Humanos, José Gregori. Um tem amigos no PMDB, e o outro é amigo do presidente. Um protege as PMs, o outro quer desmilitarizá-las gradualmente.
Iris não tem projeto algum, e Gregori preparou o seu. Cabe perfeitamente na definição que o jornalista norte-americano Murray Kempton deu para o ofício dos redatores de editoriais: são pessoas que esperam o fim dos combates, descem ao campo de batalha e matam os feridos.
Quer proibir manifestações políticas nas associações de PMs. Essas associações são entidades de direito privado. Será razoável impedir que façam manifestações políticas? Em geral elas se solidarizam com policiais assassinos, mas seria indesejável que a associação da PM paulista denunciasse o massacre de presos no presídio do Carandiru?
Quer proibir, taxativamente, as greves de policiais. Tudo bem, mas, se as greves já estavam proibidas (isso para não falar nos motins), será que um simples advérbio de modo vai resolver o problema? As greves, bem como os motins, só aconteceram porque faltou autoridade.
Nem todas as propostas divulgadas por Gregori são banais. No conjunto, não fazem nexo, mas isso é uma consequência da pressa com que foram empacotadas. Seu melhor momento está na proposta de seguros de vida, fundos de pensão e linhas de crédito para que os policiais possam viver e morrer dignamente.
É muito cômodo para a sociedade achar que o policial deve morrer defendendo a ordem e o patrimônio deixando para sua família uma pensão miserável. E, mesmo que não morra, não tira do salário o suficiente para comprar um automóvel, uma casa e a educação de seus filhos até a universidade. A sociedade finge que paga, e o policial finge que policia.
Infelizmente, não há dinheiro para financiar pensões, pecúlios e linhas de crédito. No entanto o dinheiro existe. Está sendo gasto numa máquina de segurança privada que já emprega mais gente que as Forças Armadas e custa mais que muitos aparelhos de polícias estaduais. Em São Paulo, um dos setores mais dinâmicos na geração de empregos é o das empresas de segurança.
Assim como acontece com a saúde e a educação, o contribuinte paga duas vezes pelo serviço público. A primeira, por meio de impostos que se perdem em Brasília. A segunda, indo ao bolso para comprar serviços privados. Só uma discussão paciente e até mesmo vagarosa poderá trazer as empresas privadas para dentro da questão das polícias. Os bancos têm interesse em deixar de manter dois seguranças em cada agência. As companhias de seguro têm interesse em reduzir a bandidagem. As transportadoras querem defender suas cargas.
Uma idéia para engordar a discussão: cria-se um fundo que garanta aos policiais acesso à casa própria, carro, casa e bolsas de estudo para os filhos. O Estado entra com uma parte do dinheiro, e a iniciativa privada, com outra parte e a gestão. (Pode-se até pensar numa estrutura que deixe o Estado de fora.) A condição básica para que o policial tivesse acesso a essas facilidades seria uma ficha impecavelmente limpa, cabendo aos gestores privados do fundo a definição de "impecavelmente limpa".
Hoje os policiais são protegidos por planos de saúde medíocres. Falta de cultura do brasileiro? Coisa nenhuma. Os de Nova York também. Solução: em Nova York, alguns dos melhores médicos da cidade decidiram atender policiais e bombeiros cobrando pelas suas consultas um miserê ou coisa nenhuma.
Se o governo fingiu calma na hora em que devia ficar nervoso, fica feio fingir que está nervoso na hora em que as coisas se acalmaram.

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