São Paulo, sábado, 9 de agosto de 1997
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A forma e o informe

LUIZ CAMILLO OSORIO

a publicação do livro "Nuno Ramos" é um acontecimento importante no cenário artístico brasileiro. Há muito tempo que a nossa produção de arte vem reclamando esta contrapartida editorial, que, além de ajudar na sua disseminação cultural, ultrapassando o horizonte especializado das exposições e catálogos, fortalece a bagagem reflexiva e a linguagem crítica imprescindíveis às obras.
A produção de Nuno Ramos é recente; ela se inicia no começo dos anos 80. Até nisto este livro é oportuno. Ele representa magnificamente a nossa última safra de artistas contemporâneos e mostra que uma obra em processo de constituição, atual e pouco afeita a concessões, pode ter apelo editorial.
Todo artista europeu ou norte-americano contemporâneo tem um livro para apresentar. Isto tem que passar a existir entre nós. Não devemos esperar uma obra se completar para realizar uma publicação, pois ela deve ser encarada como parte de um processo interno à obra. Feitas estas observações mais gerais, falemos do livro em si.
O formato, a paginação, o papel, a qualidade das reproduções e a organização interna do livro são notáveis. Há um ensaio de apresentação, que articula o desenvolvimento da obra de Nuno, escrito por Alberto Tassinari. Íntimo dos trabalhos do artista desde o início de sua carreira, Tassinari escreve um texto ao mesmo tempo rigoroso e fluente. Ele divide a obra de Nuno em quatro momentos, descritos a partir dos verbos "gestar", "justapor", "aludir" e "duplicar". Estes "são os quatro modos que Nuno encontrou para salientar e problematizar a invenção na arte. É através deles que construiu, para além das variações estilísticas ou de aparência visual mais imediata, um invariante poético". O que dá certa unidade a estes momentos, o que constitui o seu invariante poético, é uma tensão, interna à obra, entre a forma e o informe, entre uma força organizadora e uma potência desagregadora, enfim, entre cultura e natureza.
Toda a argumentação de Tassinari é extremamente lúcida e convincente. Eu só faria duas ressalvas ao seu texto. Primeiro, o trabalho "111", considerado um divisor de águas, não o vejo como uma ruptura radical com sua fase anterior, pictórica, compositiva. A despeito de sua força e importância, que são indiscutíveis, sinto ainda neste trabalho uma preocupação, própria do pintor, com a composição. A distribuição dos paralelepípedos sugere uma tela horizontal, remetendo a Pollock, a um estilo "all-over".
O segundo ponto é em relação à última fase, caracterizada pelo verbo "duplicar", cuja referência é o trabalho "duas casas". Será o "duplicar", o jogo entre modelo e cópia, o mais próprio e significativo desta fase? E as grandes pedras, as lajes, que começam a buscar um contato mais direto com o mundo, com a natureza? Talvez Mira Schendel já estivesse intuindo alguma coisa quando trouxe de uma viagem, e deu de presente para Nuno Ramos, um livro do escultor inglês Richard Long, que produz trabalhos intervindo na natureza. Parece-me que a direção que está se abrindo é por aí; de um "land-work" mais lírico, menos agressivo que o dos americanos. Esta afirmação -como também esta fase do trabalho de Nuno Ramos- é ainda tateante, a única certeza é quanto à disposição de arriscar que está sempre por trás dos seus desvios poéticos.
Sugestões à parte, o texto de Tassinari tem o grande mérito de percorrer com lucidez todos os caminhos abertos por esta obra ainda em germinação, trazendo-a viva, pulsante, para o leitor. Seguindo imediatamente ao texto, vêm as reproduções do conjunto de seus trabalhos misturados a fragmentos de suas poesias. Por sinal, estas mereceriam uma outra resenha, dada a maneira peculiar como aí se desenvolve uma escrita próxima de sua escultura, com uma sonoridade carregada, opaca, matérica.
Fechando o livro aparecem os textos críticos que ao longo dos últimos dez anos foram escritos sobre sua obra. Eles são assinados pelo próprio Tassinari, por Lorenzo Mamm e por Rodrigo Naves, três dos principais críticos de arte brasileiros. É digna de nota a maneira como as transformações internas do trabalho vão exigindo uma afinação da linguagem crítica. A reunião deste material será fundamental para pesquisas futuras sobre a produção do Nuno e serve de exemplo para todas as publicações de arte que vierem a se realizar no futuro. Afinal, nossa crítica de arte tem toda uma maturidade reflexiva que fica dispersa em catálogos já esgotados e revistas sem continuidade ou de acesso restrito. Desta forma vai se articulando e se constituindo um corpo reflexivo importante para a arte e a cultura brasileiras. Enfim, esta publicação é um sinal de que, aos poucos, o sistema de arte no Brasil vai se ajustando à qualidade de sua produção.

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