São Paulo, sábado, 9 de agosto de 1997
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Judeu e corintiano

SERGIO MICELI

por volta de dez anos atrás, durante uma deliciosa ceia de Reveillon, preparada por Gabriel Bolaffi, seu colega no Mackenzie e personagem deste livro, Boris Fausto fez uma sondagem a respeito de meu eventual interesse em participar do que viria a ser uma alentada pesquisa sobre a imigração no Brasil. Naquele momento, o entusiasmo com que ele antevia o impacto dos resultados sobre os estudos comparativos, com o que sucedera na Argentina, nos EUA, na Austrália, dava pistas quanto à rebentação de emoções que o assunto despertava, quem sabe enxergando aí o escape exorcizante de sua vida contraposta às constrições de uma moldura histórica.
Talvez subestimando seus recursos, não imaginei que fosse de seu feitio arriscar-se em gêneros de estatuto ambíguo, transitando entre o riscado acadêmico e o terreno da ficção. No rasto de antecessores ilustres entre cientistas sociais e filósofos contemporâneos -os romances de Raymond Williams, as memórias de Marc Bloch, Vernant, Lévi-Strauss, Gilberto Freyre etc.-, o texto do Boris surpreende pelos requintes de notação, pelas estocadas de humor, pela compaixão. Suas astúcias de observador e um registro sociográfico cortante balizam o tratamento das experiências de criança e adolescente, primogênito de uma prole de três meninos judeus meio órfãos.
"Negócios e Ócios" é a história, com lances romanescos, de sucessivas gerações das famílias que se aliaram pelo casamento de seus pais. Boris constrói um relato emocionante ao rastrear o itinerário aventuroso dos antepassados maternos sefaraditas, desde a saída da Espanha no século 15, expulsos pelos reis católicos, passando pelas vivências turbulentas de seus descendentes de classe média, acossados numa Turquia varada por conflitos interétnicos, até a "decisão" de imigrarem para São Paulo em 1910. Ainda que não tenha se preocupado em refutar os mitos de invenção da linhagem, ele costura motivações plausíveis nos cursos de ação atribuídos aos parentes, contra o pano de fundo de injunções macro-históricas. O tecido narrativo é entremeado por peripécias e anedotas, por achegas eruditas bem-sacadas, armando-se um novelo de suspense em meio a cujos desdobramentos o leitor vai se convertendo em torcedor, pronto a saborear o desfecho.
Procedimento análogo é aplicado à travessia do ramo paterno, judeus pobres e pouco educados da Europa Central, pequenos comerciantes enfurnados num povoado da Galícia, nos confins do império austro-húngaro. A elaboração desse segmento é mais esquemática, a metade do espaço concedido aos "turquinos" do lado materno, dando destaque à figura do pai como protagonista de fato e de afeto, quase um mito. Enquanto a família materna imigrou em bloco, incluindo todas as gerações no processo de traslado, o pai peitou praticamente sozinho idêntico desafio. Aliás, uma das escoras do texto é a afetuosa reconstrução da figura paterna com técnicas de bricolagem, dando contornos a um retrato contraditório, complexo, por meio de seus ardis, manhas, expedientes, macetes, trazendo-o voluntarioso e estuante de vida em aparições, roncando no sofá, fazendo transações no banco, papeando com os colegas de atividade.
A julgar pela sua foto na capa do volume, Boris é o filho que mais se lhe assemelha fisicamente, pela estatura levemente troncuda, pela ossatura do rosto, pelos olhos envolventes. O autor recriou seu modelo de atuação na chave do "tipo inesquecível", esse "self-made man" que se renomeou Simon Fausto (nascido Brettschneider Fuss), envergando com brio a fatiota impecável, compenetrado de seus dotes de comerciante atilado, mestre do regateio, convicto de estar modelando as etapas de um caminho pessoal de promoção, passando de vendedor a negociante de móveis, daí a corretor de café e atacadista de cereais. Nada parecia capaz de esmorecer seu empenho, entre outras pulsões, em garantir conforto e educação esmerada para os filhos.
A morte da mãe aos 37 anos de idade é o momento de tensão máxima na vida da família, a perda sofrida que significou a linha de ruptura entre antes e depois. Esse trágico episódio contribuiu para explicitar rivalidades entre o pai e os irmãos da mãe e, como era de esperar, determinou um rearranjo doméstico de vulto. O pai acaba se acertando com os cunhados para cuidarem da organização da casa e da educação das crianças. Os órfãos (Boris tinha sete anos), em contra-ataque, celebram um pacto de socorro, recolhendo munição para enfrentar uma nova etapa de existência dentro e fora do sobrado da avenida Angélica. Desse posto de observação, vão aos poucos construindo uma economia afetiva, religiosa, esportiva e cultural: expostos ao culto na sinagoga da rua da Abolição, aos programas cômicos do rádio, ao futebol de locutor e ao vivo, aos faroestes, às fitas em série e a Fu-Manchu.
A partir desse trem de vida, foram se situando na história da família, do bairro, do Estado, da nação, dimensões recuperadas por meio do relacionamento com as empregadas, do exílio de um vizinho figurão da Revolução de 32, da inauguração do estádio do Pacaembu, do comício de Prestes, dos sorvetes do Mappin. Faziam, a seu jeito, o aprendizado de conciliar a condição de judeu às atribulações de torcedor corinthiano, engendrando uma identidade cultural capaz de fundir a herança imigratória à prensagem local.
O fascínio do relato reside na sequência desordenada de incidentes que vão manifestando as vicissitudes dos personagens, mormente do próprio autor, ao lidarem com dimensões as mais variadas de sua identidade enquanto judeus. O evento desencadeador desse alarme consiste na decisão paterna de trocar de sobrenome, convertendo o Fuss original no Fausto italianizado e soante. Ao tempo em que ainda vivia sozinho na Argentina, enfrentando percalços de todo tipo, o jovem e ambicioso Simon deve ter tido ímpetos de moldar outra face pública, valendo-se dos recursos de autoria simbólica ao seu alcance. Essa vontade de latinizar o nome de família exprimia o embate entre partes suas em litígio. Deixava à mostra um apego algo dilacerado em relação ao legado ancestral e, ao mesmo tempo, abria espaço a essa pessoa interativa em que gostaria de se transformar, por meio de um nome mais propício às negociações de sentido. Numa lógica prática similar à da palavra marrano, com múltiplos significados em dicionários renascentistas, Fausto fazia as vezes de limbo capaz de abrigar categorias incompatíveis.
As racionalizações sobre os prováveis motivos pessoais não conseguem deslindar o intuito deliberado de instituir uma outra existência através de um novo registro de identidade. Por mais que se encontrem justificativas de ordem prática para a assunção desse nome, talvez não seja descabido interpretar esse ato de reclassificação como uma estratégia de despistamento ou, então, o que dá no mesmo, o desejo de equiparar-se àqueles identificados como pares na sociedade argentina.
Os sucessivos domicílios da família parecem sinalizar uma atitude de teor semelhante, evidenciando o projeto de se aproximar dos nacionais e de se manter afastada de bairros caracteristicamente étnicos na cidade. Poder-se-ia examinar casos semelhantes ao da família do Boris -imigrantes chegados com algum capital em espécie, habilidades técnicas ou comerciais e uma rede de contatos e clientes potenciais- com vistas a averiguar as possibilidades de ascensão social então em aberto, numa sociedade em rápida mudança.
De suas experiências como aluno do Mackenzie, um dos trechos mais sugestivos é aquele em que relata por que e de que maneira ele e os irmãos tentaram, por um período, ocultar suas origens judaicas. Esse pequeno logro acaba sendo desvelado quando o colega Gabriel Bolaffi, de uma família de judeus italianos, flagra um sagui de estimação dos irmãos Fausto comendo restos de pão ázimo da Páscoa judaica. Tais temores devem ter se acomodado bem mais depressa do que o autor imaginara, como bem o demonstra a animação com que participava da punheta coletiva no alto da praça Buenos Aires, tipo "quem acaba primeiro", postando-se no papel de vigia desse clássico da socialização masculina. São episódios que traduzem experimentos de investigação, manejo e consumação, do que significa ser judeu de classe média abonada em São Paulo nos anos 30 e 40.
Boris faz inúmeras referências ao impacto exercido pelos casamentos mistos na família, que decerto se amiudaram em sua geração. Relatado do prisma pessoal, esse fato tem sido salientado em pesquisas recentes como uma tendência estatística persistente, sintomática das modalidades de inserção dos judeus na sociedade brasileira. E mesmo a decisão familiar de matricular os meninos em colégios confessionais, o Mackenzie protestante e o católico São Bento, agrega outro indicador da disposição de irrestrito envolvimento com o país de adoção, contribuindo, sem o desejar, para que eles se sentissem afetados a ponto de questionarem a natureza de suas ligações com a herança judaica. Tudo se passa como se a progressiva ascensão familiar na hierarquia social paulistana tivesse como contrapartida a irresistível diluição daquelas fontes do cotidiano étnico em condições de realimentar tal identidade. É pena que o relato se interrompa bem antes de suas atividades como pesquisador da história brasileira contemporânea, sem sequer aflorar as motivações de sua orientação para o trabalho intelectual.
O fato de que o livro tenha adotado como perspectiva de análise a sociedade e a cultura locais, ao invés de examinar os acontecimentos de um prisma europeu, talvez decepcione leitores desejosos de confirmar representações convencionais sobre a experiência de pertencer a uma família judia na sociedade paulista. Em lugar da toada cacete dessa imagem pré-fabricada do que vem a ser a condição judaica no trópico, nutrida com frequência por estereótipos importados da abundante literatura norte-americana sobre o assunto, um dos atrativos destas memórias é a habilidade de desarrumar pré-conceitos e constituir parâmetros surpreendentes de juízo.
Duas coisas não me parecem bem resolvidas no livro. O título é um trocadilho mixo que não faz justiça às linhas de força do relato. Talvez calhasse melhor como chamada na seção de amenidades em revistas destinadas a empresários. Tampouco me convence o lero elevado da introdução, provendo o texto com aparato bibliográfico e filiação disciplinar, enquadrando-o no sub-gênero "ego-história", invento atribuído à historiografia francesa. "Negócios e Ócios" é uma excelente contribuição ao gênero "memórias", situando-se pois em boa companhia, de algumas obras-primas da história intelectual brasileira (Joaquim Nabuco, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos, Pedro Nava etc.). Mas, como diria minnha avó calabresa, nada disso empana o brilho do livro. Boris juntou aos méritos de historiador provocativo a coragem de redigir um depoimento sensível e comovido sobre sua formação.

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