São Paulo, sábado, 9 de agosto de 1997
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A terceira margem do rio

RUBENS RICUPERO

"Qual é a vantagem de ter 80 canais de TV se, na mesma hora do dia de Natal, 79 deles projetam 'It's a Wonderful Life'?" (acho que em português o filme de Capra, com James Stewart, se chama "Do Mundo Nada se Leva").
Essa frase, que escutei em Washington quando lá vivia, resume o paradoxo do nosso tempo. Nunca houve tantos e tão sofisticados meios de informação, alguns transmitindo enquanto os fatos ainda não acabaram de acontecer. Todos, porém, ou quase, dizem as mesmíssimas coisas sobre os mesmos temas.
O resultado é que a banalidade da sabedoria convencional é ampliada "ad nauseam". À força de serem marteladas, meias verdades, vitórias indecisas ou provisórias se convertem em dogmas irrecusáveis. O consolo é que, sendo tudo descartável, as verdades de hoje são os erros esquecidos de amanhã.
Enquanto duram, todavia, os equívocos fazem um considerável estrago. Não apenas por nos impedirem de distinguir os contornos de mudanças que passam por nós como jatos supersônicos em parada militar. Mas também porque, ao aceitarem tais versões, as pessoas confiam seu destino a ideologias simplificadoras da realidade.
O que está em jogo, de fato, não é um mero debate acadêmico sobre o sentido e as implicações das transformações econômicas. Trata-se de saber se é verdade ou não que, na selva da globalização, não temos escolha a não ser seguir um modelo que nos promete suor e lágrimas sem garantia de vitória.
A distorção começa pela falsificação do modelo. Geralmente identificado à economia americana e, em menor grau, à inglesa, seus êxitos inegáveis são seletivamente atribuídos a fatores escolhidos a dedo: competição acirrada, flexibilidade do mercado de trabalho, menor intervenção do governo, redução da proteção social. Outras causas, de peso certamente maior, mas nacionais e intransferíveis, são convenientemente escamoteadas. É o caso, por exemplo, do "dividendo da paz", isto é, a economia no orçamento da defesa devido ao fim da guerra fria, estimada nos EUA entre 2% e 3% do PIB.
Na mesma situação se encontra a desvalorização, até inversão recente, das moedas americana e inglesa. Alan Binder, ex-vice-presidente do Fed, chegou a declarar que mais de 80% da competitividade reconquistada pelo comércio exterior americano nos últimos anos e agora ameaçada de novo pelos japoneses se devia à desvalorização consequente aos acordos do Plaza e do Louvre.
Não faltam outras ilustrações do que Seymour Lipset chamou de "excepcionalismo" dos EUA, como a possibilidade de acumular impunemente déficits comerciais anos a fio, em razão da posição privilegiada do dólar. É preferível, no entanto, realçar aspecto que os panegíricos do modelo único mencionam correndo como se estivessem pisando em brasas. É o custo social em termos de aumento da desigualdade, marginalização, criminalidade, desintegração social. Se não se pode falar de crescimento sem computar o custo ambiental, por que não se deveria também levar em conta o custo social? Acaso por que o sofrimento humano não pode ser medido pelas calculadoras?
O fenômeno é bem conhecido nos Estados Unidos, onde foi há pouco estigmatizado por dois ex-membros do governo Clinton, Robert Reich e Laura Tyson. Veja-se, entretanto, o exemplo inglês pós-Thatcher, tal como revelado no primeiro estudo europeu da pobreza realizado pela agência estatística Eurostat.
Os três países de maior índice de pobreza são Portugal (26%), Grécia e Inglaterra (22%). Temos, portanto, o primeiro país na Europa (e no mundo) a iniciar a Revolução Industrial no mesmo nível dos dois retardatários! Em termos de porcentagem de crianças vivendo em lares pobres, a situação é pior: Portugal (28%) e Grã-Bretanha (32%). Outro relatório, elaborado pelo Instituto de Estudos Fiscais, mostrou que o Reino Unido conheceu, nas duas décadas recentes, elevação sem precedentes da desigualdade. Paul Johnson, co-autor do trabalho, declarou: "O aumento da desigualdade é provavelmente a maior mudança social que experimentamos nos derradeiros 20 anos".
Diante desse autêntico retrocesso histórico, quem pode espantar-se da avalancha de votos que levou Tony Blair ao poder? Quem pode estranhar que o novo "Labour" de Blair queira encontrar um terceiro caminho, entre a receita reaganista/thatcheriana, de um lado, e a arcaica fórmula do estado de bem-estar dos anos 50, do outro?
Não é de hoje a busca da terceira via, no passado, entre comunismo e capitalismo, no presente, entre duas formas extremas e igualmente inaceitáveis deste último. Descartá-la como quimérica é a atitude da direita, que, como mostrou Bobbio, reúne aqueles para os quais a desigualdade é tão predeterminada e imodificável como o sistema planetário.
Essa via é evasiva e nos fugirá sempre, como a terceira margem do rio de Guimarães Rosa. Ser problemático por essência, o homem contagia a vida e a sociedade com uma busca que nunca encontrará repouso. É por isso que a solução ao problema de hoje passa a ser o problema de amanhã. Para todos os que recusam a mesmice da programação convencional, é a viagem da busca que lhes dará a matéria para se criarem a si mesmos, ao criarem a própria história.

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