São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Sociedade ruim, bom governo

MAURICIO PULS
DA REDAÇÃO

O livro de Judith Tendler sobre o governo de Ciro Gomes no Ceará ("Good Government in the Tropics", Bom Governo nos Trópicos) provoca, a princípio, certa surpresa no leitor brasileiro, em razão da polêmica que cercou aquela gestão (1991-1994).
Além de programas bem-sucedidos (e até premiados no exterior), seu governo realizou obras de utilidade discutível, como o Canal do Trabalhador, desativado oito meses após a inauguração. Também não conseguiu conter as epidemias de cólera e dengue (esta última terminou atingindo o próprio Ciro).
Contudo, como a autora adverte, não se trata de um balanço das realizações tucanas, mas de um estudo de caso sobre programas que deram certo. Tendler não quer narrar a história do período, mas analisar as razões que levam certos governos a fazer um bom trabalho, apesar das condições adversas.
A autora examina, então, quatro projetos -nas áreas de saúde pública, extensão rural, emprego e apoio às pequenas empresas. Todos alcançaram resultados positivos: a mortalidade infantil caiu sensivelmente com a contratação de paramédicos; a produtividade no campo cresceu com a adoção de um atendimento mais personalizado; obras contra a seca criaram empregos de forma mais rápida que programas semelhantes; por fim, o Estado conseguiu fortalecer as pequenas empresas apenas redirecionando suas compras.
Com base nisso, a autora -professora de economia política no MIT (Massachusetts Institute of Technology)- coloca em questão alguns paradigmas existentes no exterior a respeito do papel do Estado. Tais doutrinas não têm importância meramente teórica, uma vez que esses paradigmas embasam as decisões das agências internacionais de desenvolvimento, responsáveis pelo financiamento de programas no Terceiro Mundo.
O discurso corrente sustenta que os governantes de nações subdesenvolvidas buscam apenas satisfazer seus interesses particulares e, para isso, abusam do empreguismo e do clientelismo. Já os servidores públicos são classificados de incompetentes e venais. As recomendações práticas resultantes dessa visão estereotipada são conhecidas: de um lado, é preciso reduzir o tamanho do Estado, demitindo funcionários, terceirizando ou privatizando serviços; de outro, é necessário limitar a capacidade decisória dos servidores, submetendo-os às pressões do mercado.
Os exemplos de boas gestões, por sua vez, são mal interpretados. Em geral, a comunidade internacional filtra as experiências dos países em desenvolvimento pela ótica da superioridade intrínseca do mercado. Os "tigres asiáticos" constituem o exemplo clássico: até recentemente, julgava-se que o crescimento desses países decorria da pequena intervenção do Estado, quando na realidade ocorria o contrário. Hoje o próprio Banco Mundial (que liderou a ofensiva contra a ingerência estatal na economia) admite que um "Estado eficiente" é fundamental para o sucesso econômico e que o desenvolvimento é impossível sem ele.
Pior: as recomendações práticas para os governos de países subdesenvolvidos não levavam em conta nem sequer os numerosos estudos sobre a produtividade nas grandes empresas. O "enxugamento" da máquina, quando desacompanhado de medidas complementares, não só não aumenta a produtividade como piora o desempenho dos demais servidores. De resto, estigmatizar os empregados não induz ao aumento da produtividade em nenhuma organização.
Tendler demonstra que os êxitos do governo Ciro Gomes resultaram, em larga medida, do empenho dos servidores públicos em exercer suas tarefas. Desde o início, o governo procurou esclarecer a sociedade civil e os próprios funcionários sobre a importância dos programas implementados. O Estado realimentou continuamente a dedicação de seus empregados com prêmios por desempenho e com propaganda exaltando os resultados positivos. A propaganda, por sua vez, levou a própria sociedade a cobrar resultados das prefeituras e dos servidores que não correspondiam às expectativas geradas pela publicidade.
A análise do caso cearense permite assim rejeitar a hipótese de uma causalidade unilinear entre setor privado e setor público -em particular a tese de que a "boa" sociedade produz o "bom" governo, e a sociedade "ruim" leva ao "mau"governo. O exemplo revela que o Estado pode implementar uma gestão progressista mesmo numa sociedade "atrasada".
A demonstração de que a intervenção estatal desempenha um papel positivo no desenvolvimento não se dirige apenas contra o neoliberalismo, mas também contra as doutrinas das ONGs (Organizações Não-Governamentais), que desqualificam o governo central e ressaltam o papel dos governos locais e da sociedade civil.
Tendler argumenta que todo processo descentralizador -ou seja, toda transferência de funções para as administrações municipais e ONGs- implica, paradoxalmente, uma maior centralização, pois exige um aumento na capacidade do Estado para gerenciar e fiscalizar os programas. A sociedade civil não é homogênea: sem o controle do governo central, os recursos dos programas são desperdiçados ou desviados para fins privados. Desse modo, a autora procura dissolver o maniqueísmo que hoje cerca a imagem do Estado.

Onde encomendar
"Good Government in the Tropics", de Judith Tendler, pode ser encomendado à The Johns Hopkins University Press (2715 North Charles Street, Baltimore, Maryland, EUA). Para encomendas em livrarias no Brasil, ver à pág. 5-12.

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