São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Fordlândia

EDUARDO SGUIGLIA

O relógio de ouro, sustentado por um fino móvel de mogno, marcava 12h50. Ernst Liebold conferiu a hora no relógio que levava num bolso do colete e apressou a leitura da correspondência que a secretária tinha separado para ele de manhã. A mesa oval, de estilo colonial inglês, estava posta para quatro comensais. Um vaso de cristal azul esfumado, cheio de rosas viçosas, dominava o centro da mesa. Liebold, responsável por todos os trâmites da empresa, gostava de chegar alguns minutos antes em todos os encontros, mas tinha que mostrar que seu zelo pelo trabalho chegava até o próprio refeitório. No salão só dois objetos o distraíam. Um quadro que mostrava o perfil do chefe, de pé e com a mão direita apoiada no espaldar de sua poltrona preferida, e a máxima de Thoreau que o chefe mandara gravar nas madeiras de cipreste que revestiam as paredes: "Corta tua própria lenha e te aquecerás em dobro". Quando os outros dois executivos entraram, Liebold separou da correspondência um telegrama que havia chegado do Brasil. Ele continha uma valiosa informação para o tema de que iam tratar naquela tarde de junho de 1930. Edsel Ford e Charles Sorensen cumprimentaram Liebold e sentaram-se um na frente do outro. Os três ficaram em silêncio. Edsel repassou as anotações que trazia numa pasta, Sorensen dirigiu a vista para a vidraça e Liebold tornou a conferir seu relógio de bolso com o de ouro e releu o telegrama. A vidraça dava para o estacionamento da fábrica. Através dos vidros podia-se ver centenas de carros flamejantes que esperavam para ser carregados em vagões de trem.
À uma em ponto a porta se abriu e um homem de estatura mediana e ar jovial entrou no refeitório. Para alguns era um homem simples, erroneamente considerado complexo; para outros, um homem complexo cujo gênio projetava uma enganosa aura de simplicidade. Era Henry Ford, o homem mais rico do mundo e o industrial mais conhecido e admirado.
Henry Ford sentou-se ao lado de Edsel, seu único filho, a quem tinha passado, de direito, o cargo de vice-presidente da corporação, e deu uma olhada na direção da vidraça. Depois voltou a vista para Liebold e Sorensen que, sentados na sua frente, sorriram para ele.
- Que novidades temos para hoje, senhor presidente? -perguntou a Edsel.
- Ficamos de tratar da situação no Amazonas. Naquela época, a empresa consumia um quarto da produção mundial de borracha e Ford estava cansado das condições que o monopólio inglês impunha ao mercado. Seu interesse por se auto-abastecer de borracha tinha começado no início dos anos 20 e, enquanto financiava custosas e malogradas pesquisas para produzi-la artificialmente, pediu ao seu pessoal que procurasse um lugar apropriado para estabelecer uma gigantesca plantação. Os especialistas percorreram o Panamá, a Colômbia e algumas zonas da Ásia e da África, mas Ford optou pela Amazônia brasileira. Tinha comprado ali milhões de hectares para produzir tanta borracha quantos fossem os pneus necessários para a indústria automobilística. Era, como orgulhosamente o tinha declarado no Congresso da União, a colonização mais ambiciosa do Amazonas. Tudo o que devia ser feito era transformar sua força cega e sua extraordinária fertilidade em energia disciplinada. Sob o impacto de nossa vontade e de nosso trabalho, disse ele, o Amazonas transformar-se-á no primeiro capítulo da história de uma nova civilização.
- Que problemas pode haver lá? Mandamos dinheiro suficiente, tratores, um bom administrador, temos uma excelente relação com o governo, que mais se pode querer? A única coisa que falta, senhores, é produzir borracha, toneladas de borracha para conseguir duas coisas. Primeira, que os malditos ingleses não nos incomodem mais com seus preços ridículos e o controle do mercado. Segunda, que Charlie sempre tenha matéria-prima para fazer os Ford rodarem pelo mundo inteiro. Hein, Charlie?
- Pois é, Henry. É claro -respondeu Sorensen.
Charles Sorensen, que dirigia o vasto complexo sobre o rio Rouge, assentiu e olhou para Edsel, com desdém. Sorensen achava que estava lá, no auge do poder, por mérito próprio e tinha razão. Na verdade, tinha sido ele o responsável pela inovação na linha de montagem que tornara o chefe famoso, quase um mito, entre políticos, industriais e cientistas. Na velha fábrica de Highland Park, 15 anos atrás, tivera a audácia de adotar conceitos que estavam no ar e de colocá-los em prática sob a forma de uma cinta aérea que levava todas as partes de um carro para que se montasse em muitíssimo menos tempo. Um movimento contínuo, sincrônico, monótono, que ligava os que montavam os chassis com os que montavam e soldavam os motores e as carrocerias. Em Highland Park, localizada num bairro de Detroit, era preciso 12 horas e meia do trabalho de um homem para montar um Ford T. Depois que Sorensen instalou as linhas de montagem, uma hora era suficiente. Henry Ford atribuía a inovação a si mesmo, afirmando em público que tinha tido a idéia durante uma visita a uma fábrica de relógios. Sorensen nunca revelou o segredo, nem contradisse a versão apócrifa do chefe. "Charlie de Ferro" professava uma lealdade sem limites a quem o contratara, quando estava começando, como desenhista industrial, o que lhe havia permitido escalar todos os degraus até o auge. Highland Park fora substituída por um complexo de 90 prédios situado em Dearborn, na periferia de Detroit, às margens do rio Rouge. Lá, em Rouge Plant, além de serem produzidos 10 mil carros por dia, fundiam-se e modelavam-se todas as peças utilizadas pelos produtos Ford. Sorensen, de personalidade extremamente forte e melancólica, dirigia a Rouge Plant e via em Edsel o único obstáculo que o impedia de chegar ao domínio total da empresa.
- De qualquer maneira há alguns inconvenientes -replicou Edsel.
- Que tipo de inconvenientes? Vamos, diga de uma vez -exigiu Ford, que não perdia oportunidade de demonstrar a seu filho quem era o chefe. - Não é fácil conseguir pessoal estável para a plantação e além disso a pessoa encarregada dessa tarefa está com malária.
- Eu também sofri de impaludismo quando era criança e estou aqui. Não posso acreditar que isso nos atrase. Procurem substitutos, façam tudo o que for preciso para produzir, logo. Edison e Firestone me garantiram que é impossível fazer borracha artificial, portanto não temos outra alternativa. A menos que você queira se render aos ingleses. Além disso, o Departamento de Comércio me informou que o baixo Amazonas, onde nós estamos, é o melhor lugar do mundo para a borracha. Até o próprio presidente Hoover me disse isso. Foi de lá, inclusive, que os ingleses pegaram as sementes que foram usadas nas plantações da Malásia e do Ceilão. Portanto, senhores, não tem jeito. Vamos trabalhar duro e economizar tempo.
- Eu tenho uma boa notícia do escritório do Brasil -interveio Liebold, mostrando o telegrama.
Liebold, diferentemente de Sorensen, preferia não ser o centro das atenções nas reuniões. Tinha um tom de voz baixo e monótono e ficava contrariado quando lhe pediam para repetir o que acabara de dizer. Ford conhecia essa sua fraqueza. - O que foi que você disse?
Liebold pigarreou e depois respondeu.
- Disse que tenho uma boa notícia do escritório de Belém, do Brasil. Eles nos mandaram um telegrama.
- Qual é a notícia? -perguntou Edsel.
- Estão informando que já têm um substituto para o cargo. Um argentino.
- Italiano ou argentino? Há muitos italianos na Argentina -inquiriu Ford.
- Eu disse argentino, argentino de mãe irlandesa.
A porta se abriu, e um garçom, com uma bandeja de prata lavrada, entrou para servir o almoço. Trazia uma jarra com suco de fruta, três pratos preparados à base de soja e outro com um pedaço de carne de vaca, semicrua. Fazia algum tempo que Ford estava obstinado em comer só vegetais e atribuía à soja propriedades milagrosas. "Se as pessoas aprendessem a comer o que devem não haveria necessidade de hospitais, nem de cadeias", asseverava. O menu do dia era aipo recheado com queijo de soja, croquetes de soja, e a sobremesa, uma torta de maçã coberta com sorvete de soja. Só Sorensen, que prontamente aproximou de si o prato de carne, se atrevia a desafiar a rigorosa dieta que o chefe impunha.
Ford pediu ao garçom, um italiano que atendia no refeitório executivo desde a época de Highland Park, que depois que acabasse de servir se chegasse ao lado dele. Quando o tinha perto de si, olhou para suas mãos e depois fixamente em seus olhos. O garçom esperou, quieto, a pergunta de sempre.
- Imagino, caro Umberto, que você não esteve fumando ou bebendo, esteve?
- Não senhor Ford, de jeito nenhum.
- O que você acha de a gente contratar um italiano como você para ensinar a cozinhar na cidade que estamos erguendo no Brasil?
- Uma ótima idéia, senhor. Se não fosse pela minha família, eu iria agora mesmo. O senhor sabe que pela empresa e pelo senhor faço tudo o que estiver a meu alcance.
Ford ficou satisfeito com as respostas e dispensou-o com um sorriso. Depois pegou a jarra e cheirou o suco de frutas. Antes de encher seu copo deu uma olhada para os outros três.
- Bom, com esse argentino o problema está resolvido. Mesmo assim, Charlie, mande alguém da sua confiança para tentar saber o que realmente está acontecendo na floresta. Ah!, aproveite e peça para me enviarem uns pássaros da região para minha casa em Fairlane. Deve ter dos bons.
- Farei isso ainda hoje -respondeu Sorensen.
- Agora, senhor presidente, cavalheiros, se me permitem, vamos comer -disse Ford. Edsel tinha pensado em tratar de outros assuntos, mas fechou a pasta, trocou um olhar com Liebold e se dispôs a comer. Seus olhos castanhos transmitiram uma expressão de perplexidade. Sentia-se um impostor na Ford. Naquela tarde tinha tentado mais uma vez encontrar um caminho que lhe permitisse demonstrar seu valor, sem enfrentar-se diretamente com seu pai.

Tradução de Amelia Gatti.

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