São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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ADRIXERLINUS

FERREIRA GULLAR

Hipidroxérnus governava Xérnie desde que seu pai, Xernuspidro, enlouquecera. Xérnie era uma bela cidade nascida à entrada de uma baía azul e rumorosa. Até onde chegava a memória dos seus habitantes vivos e a história contada pelos mortos, não se sabe de nenhuma desgraça sísmica sofrida pela cidade: nem maremotos, nem terremotos, nem furacões, erupções vulcânicas ou inundações; nenhum desses desastres era conhecido do alegre povo de Xérnie. Não obstante, o rei Xernuspidro enlouquecera. E enlouquecera, segundo os historiadores, "após um acesso de riso, inconformado com a impossibilidade de fazer de Xérnie uma cidade perfeita".
Ao assumir o poder, Hipidroxérnus prometeu tornar realidade o sonho do pai, o que deixou apreensivos alguns membros do Conselho do reino, temerosos de que, como Xernuspidro, Hipidroxérnus também enlouquecesse. "Tanto mais", dizia o conselheiro chefe, "que a loucura, segundo o oráculo, é uma doença hereditária".
Mas antes que tal desgraça ocorresse, o exército de Xiriborêlus, vindo do outro lado da cordilheira, marchou até Xérnie, numa atordoante zoeira de brados, gritos, uivos, urros, clarinadas e relinchos das éguas em que vinham montados os guerreiros (que só montavam em éguas). Diante daquela algazarra, os habitantes de Xérnie apavoraram-se e fugiram mar adentro em seus navios e botes, outros a nado, outros em pranchas de surfe e bóias improvisadas. Os invasores -correndo aos berros pelas ruas e ruelas, becos e travessas, arrombando portas e portões- buscavam as mulheres de Xérnie, tidas como lindas e fogosas. E por não terem encontrado uma só xerniena, tocaram fogo na cidade e se retiraram.
Hipidroxérnus, ao contrário do que se poderia esperar, rejubilou-se com a destruição de Xérnie. "Agora, podemos construir aqui uma nova cidade, a cidade perfeita: Adrixerlinus" (que na língua xerniense quer dizer "cidade perfeita"). E pôs mãos à obra.
A primeira providência que tomou foi traçar pessoalmente o plano da nova cidade, certo de que "não se poderá jamais ordenar a vida de uma comunidade se as pessoas continuam a se mover num labirinto de vielas e becos imundos, e a residir em casarios confusos, anarquicamente edificados". Por isso, entendia que o exército de Xiriborêlus fora guiado por Deus, pois acreditava que seu pai enlouquecera exatamente porque a anarquia urbanística de Xérnie inviabilizava o sonho da sociedade perfeita.
Conforme o plano urbanístico concebido por Hipidroxérnus, no centro da cidade estava a acrópole, donde partiam 12 raios dividindo a cidade em 12 partes iguais. As ruas todas eram retas, as praças redondas e as casas com um mesmo desenho e tamanho, já que nelas só morariam casais: os filhos seriam entregues ao governo, que os criaria e educaria.
Imediatamente, deu início à construção da nova cidade. Fora dos limites do plano urbanístico, num acampamento improvisado, instalaram-se os antigos habitantes da destruída Xérnie, futuros habitantes da cidade ideal.
Hipidroxérnus dirigiu pessoalmente os trabalhos de edificação de Adrixerlinus. Com mão de ferro, impôs as condições de quase miséria em que o povo teve de viver para tornar possível a sua utopia. "Vocês agora comerão pouco e viverão no desconforto para que amanhã vivam na mais perfeita cidade que o homem jamais conheceu." E assim foi: durante anos e anos, revezando-se dia e noite, homens e mulheres, crianças e anciãos trabalharam duro até concluírem a nova cidade. Depois de tanto esforço e privações, mal conseguiam acreditar que, de fato, o tormento havia terminado, a cidade estava pronta, e o tempo de felicidade ia começar.
Na cerimônia de inauguração da nova cidade, Hipidroxérnus, falando ao povo, afirmou: "Agora que já temos uma cidade rigorosamente planejada, propícia à instauração da ordem e da felicidade, cabe-nos planejar também a nossa vida e nossa sociedade para que tudo funcione segundo a harmonia que impera no cosmos". E passou a enumerar as normas da nova ordem social: a sociedade será dividida em três estratos, ficando, no topo, os pensadores, que garantirão a coesão do Estado e tomarão as decisões; o segundo estrato será constituído pelos produtores, ou seja, os agricultores e artesãos; o terceiro, pela milícia armada, cuja função será defender a cidade e fazer cumprir as decisões do governo. Os poetas, os mendigos, os vagabundos e os celibatários -aqueles por estimularem a ilusão em lugar da verdade, e os demais por não cumprirem com os deveres de cidadãos- serão expulsos da cidade perfeita. Todo e qualquer fator emocional, afetivo e erótico será eliminado da vida social, onde deve imperar a objetividade, a racionalidade e o pragmatismo (1).
Inaugurada a cidade, começou a filtragem dos que se adequavam ou não às novas exigências estabelecidas por Hipidroxérnus. Desnecessário dizer que boa parte dos habitantes da antiga Xérnie não obteve permissão de se transferir para a nova cidade. Continuou no acampamento provisório que, com os anos, havia se ampliado enormemente, ganhara casas de alvenaria, zona comercial, área agrícola, barbearias, enfim, tudo o que era necessário à vida de uma verdadeira cidade. Não obstante, porque o acampamento não possuía as mínimas condições de higiene, os ratos proliferavam nas habitações, as doenças vitimavam especialmente as crianças. Por isso, permanecer ali era quase uma condenação à morte. Mas um cinturão militar fora montado para impedir que pessoas não selecionadas entrassem em Adrixerlinus. Os excluídos passavam as noites tentando romper o cerco, mas os que se aventuravam a fazê-lo eram abatidos pelos guardas.
Os anos se passaram. Os que foram proibidos de viver na cidade perfeita conformaram-se e trataram de melhorar no que puderam as condições de vida no acampamento. Chegaram até a lhe dar um nome: Nadrixerlinus (ou seja, "cidade imperfeita"); dos que se tinham instalado em Adrixerlinus não havia notícia. Como ninguém podia entrar ali nem de lá sair, quase nada se sabia da vida de seus habitantes. Mas aos poucos surgiram rumores de que a vida em Adrixerlinus era de uma monotonia insuportável. "Todo mundo tem comida, casa, escola, hospital, férias, campos de esporte, bibliotecas, pinacotecas; a duração média da vida dos cidadãos aumentou; a mortalidade infantil diminuiu; não obstante, a incidência de loucura cresceu de maneira alarmante", afirmava uma publicação apócrifa que circulou em Nadrixerlinus e que foi formalmente desmentida pelo governo de Adrixerlinus. A verdade, porém, é que, de alguns anos para cá, o êxodo mudou de direção: agora eram os habitantes da cidade nova que tentavam furar o bloqueio, no propósito de mudar-se para o antigo acampamento. "Preferimos conviver com ratos e escorpiões a morar numa cidade asséptica onde toda aventura é proibida e todo afeto é clandestino", afirmavam os que de lá fugiam. Na opinião do filósofo Eplixírnus, o primeiro intelectual importante a se exilar, "Adrixerlinus expressa o fracasso da profunda aspiração do ser humano à ordem e à justiça plenas. O erro de Hipidroxérnus foi não entender que ao homem só é dada a metade do ouro" (2).
E foram tantos a fugir que, em pouco tempo, a população de Adrixerlinus caiu a menos da metade. Hipidroxérnus tentou introduzir mudanças em seu projeto, como dispensar o treinamento militar obrigatório para todos os jovens desde os dez anos de idade, mas esbarrou na discordância dos chefes militares. Vendo que a situação se tornava insustentável e que ele mesmo era visto com desconfiança pelos generais, passou a conspirar com outros descontentes. A conspiração foi descoberta. Hipidroxérnus fugiu para Nadrixerlinus. E ali chegando, declarou: "Ao que tudo indica, só os homens perfeitos suportam viver na cidade perfeita. E eu não sou um deles" (3).
Antes de morrer, o filósofo Eplixírnus voltou a opinar sobre a utopia da cidade perfeita. Em carta à sua amante Nifoxmina, afirmou: "Talvez o erro esteja em se projetarem cidades ao invés de deixá-las nascer espontaneamente, porque quem recebe a incumbência de projetar uma cidade está obrigado a concebê-la perfeita e justa; absurdo seria projetá-la deliberadamente imperfeita e injusta. A natureza pode se dar ao luxo da injustiça e da imperfeição; o homem, não".

Notas:
1. Uma exposição mais minuciosa das normas de vida impostas aos habitantes de Adrixerlinus encontra-se na obra de Bernard Russell, "Histoire de la Cité Parfaite" (Albin Michel, Paris, 2984). Ele escreve: "A condição das mulheres, em Adrixerlinus, era muito especial. Elas não eram mantidas isoladas como ocorria nas cidades gregas com as mulheres respeitáveis. As moças eram submetidas ao mesmo treinamento físico que os rapazes e, o que é mais curioso, rapazes e moças faziam ginástica juntos, todos nus. Pretendia-se que as moças ganhassem musculatura e resistência praticando corridas, lutas, lançando dardos e discos, atirando com arcos, a fim de que os filhos que viessem a ter fossem sadios e vigorosos, e elas mesmas soubessem suportar melhor as dores do parto. O fato de se exercitarem completamente nuas não implicava em desonra, uma vez que os esportes eram considerados como jogo e prazer, praticados sem maus pensamentos. Os homens que se recusavam a se casar eram declarados desonrados pela lei e obrigados, mesmo nos dias mais frios do inverno, a caminhar nus durante horas ao ar livre. Às mulheres não era permitido exteriorizar sentimentos que não fossem de interesse do Estado. Elas podiam desprezar o covarde, ainda que se tratasse de seu próprio filho, mas não deviam demonstrar sofrimento se seu bebê fosse condenado à morte por ter sido considerado débil ou se seus filhos morressem no campo de batalha. Uma mulher sem filhos não devia se opor à decisão das autoridades de procurar outro homem, se seu marido não fosse capaz de engravidá-la".
2. "The Xernie History and Philosophy", T. Goomperz, 4ª edição, Londres, 1930;
3. Apud "The Culture of Cities", L. Mumford, Harcourt, Brace and Company, Inc., Nova York, 1938.

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