São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Infância proibida para menores

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em fevereiro de 1993, em Liverpool, na Inglaterra, dois garotos de dez anos raptaram um menino de dois, num shopping center, levaram-no até um terreno baldio, bateram nele com uma barra de ferro e tijolos, e o largaram, provavelmente já morto, na linha férrea que passava por ali. O crime foi logo descoberto e as televisões do mundo inteiro transmitiram imagens, gravadas pelas câmeras de segurança no shopping, do pequeno James Bulger dando a mão para os seus raptores, na saída de uma loja. O julgamento aconteceu poucos meses depois e os assassinos foram condenados.
"Como se fosse o início de uma aventura perigosa, o menino dá a mão para o mais velho e eles vão seguindo um terceiro pela praça...". Assim começa "A Cruzada das Crianças", um esquecido livro infantil; e assim começa o recém-publicado -e difícil de esquecer- "As If", de Blake Morrison (Granta, 244 págs., 14,99 libras), um misto de reportagem e autobiografia em torno desse assassinato. E, assim como ele reescreve, no início, a história medieval dessa cruzada, em que crianças vão levando outras à terra prometida, reescreve, com acentos pessoais, a história do julgamento, enquanto reescreve sua própria infância e sua história, no meio do caminho de uma vida.
Não é a primeira tentativa: além de seu extraordinário relato autobiográfico "And When Did You Last See Your Father?" (1993), Blake Morrison escreveu também um conto sobre bicicletas roubadas para a revista "Granta" (outono de 1995). Sua preocupação com a cultura da violência vem desde o livro de poemas "The Ballad of the Yorkshire Ripper" (1985); e as duas correntes se unem, agora, no novo livro, uma tentativa de compreender e escrever o que é a infância, esse terreno "cada vez mais estranho e impossível de conhecer", à medida que vamos ficando mais velhos.
É, ainda, um livro sobre a meia-idade, a paternidade e o casamento, iluminados por uma prosa que não é exatamente de ficção, mas também não é só informativa, e que vai-se enriquecendo, quase perversamente, quanto mais se debruça sobre o assassinato incompreensível de uma criança por outras crianças e o processo só um pouco mais compreensível do julgamento delas por uma corte inglesa de adultos.
França, 1993: três meninos dão uma surra e matam um mendigo. Noruega: uma menina é abandonada morta na neve por três crianças de seis anos. Chicago: dois garotos largam um menino menor do alto de um edifício. De lá para cá, a lista de atrocidades cometidas por crianças não pára de aumentar (e Blake Morrison não sabe do Brasil). Como ele diz, "a infância não é mais lugar para criança".
Definir essa infância, apoiado ou não no "Émile" de Rousseau, que o repórter Morrison carrega no bolso quando vai cobrir o julgamento para uma revista, é um tema muito mais refratário do que parece ser para o promotor. A primeira medida judicial, aliás, sumariamente executada, é descartar a possibilidade de uma defesa pelo princípio do "doli incapax", a impossibilidade de alguém ser responsabilizado pelo dolo cometido. Juridicamente, a idade da razão começa aos dez anos na Inglaterra. Isto significa que uma criança de dez anos (8 na Escócia, 12 no Canadá, 15 na Noruega, 18 na Romênia: não há consenso mínimo sobre o assunto) já pode ser responsabilizada por seus atos. Nenhum menino jamais foi chamado para integrar um júri; mas pode passar o resto da vida na prisão pelo que cometeu aos dez anos.
Em meio a um cenário doloroso de reencenações do crime, gravações de interrogatórios e assédio jornalístico; em meio às tardes intermináveis de testemunhos e às cenas tristes dos dois meninos, oscilando entre a arrogância culposa e a mais inocente infantilidade, autor e leitor vão se afundando na incapacidade de compreender a natureza do crime e dos criminosos.
Explicações nunca apresentadas no tribunal e nem sequer disponíveis à defesa incluem os relatórios de assistentes sociais, que um amigo de Morrison lhe passa. É uma situação previsível: pais que somem de casa, ou batem na mulher, ou as duas coisas; alcoolismo e desemprego; irmãos assustadores; comportamento aberratório na escola. Nada disso é evidência admissível para a Justiça. "É preciso compreender um pouco menos e condenar um pouco mais", declarou o primeiro-ministro John Major, à época. Parece um epitáfio sombrio para nossa década.
compreender o que não pode ser compreendido toca, aqui, na raiz de um problema que, além de moral, é também literário. Blake Morrison está escrevendo num gênero ambivalente, de uma vez só a favor e contra a literatura. Refinadamente direto, virtuosístico nas descrições, o texto não é menos rico de citações e alusões, nem menos cuidadoso na escolha de termos do que, por exemplo, a autobiografia anterior. A insistência sobre a palavra "eu", as memórias tocantes desse narrador, as cenas familiares, as frustrações impiedosamente relatadas: nada disso garante a realidade, fora do livro, da assinatura na capa, embora todo o esforço da escrita seja mostrar que sim. Que essa coincidência se prova finalmente impossível faz parte da narrativa e nos leva adiante, até outras e piores vertigens.
Não é casual que um número grande de autores contemporâneos têm se voltado para narrativas de infância, muitas delas na primeira pessoa. "Paddy Clarke Ha Ha Ha", de Roddy Doyle (Estação Liberdade), "Reading in the Dark", de Seamus Deane (Knopf), e "Boyhood", de J.M. Coetzee (no prelo, Viking) são alguns exemplos, aos quais se pode acrescentar, com outro foco, "Bruchstücke", de Binjamin Wilkomirski: fragmentos do Holocausto, na experiência de um menino de três anos (a sair, Companhia das Letras). Ou ainda, e de modo especial, o encantatório "Flickerbook", de Leila Berg, a autobiografia de uma menina judia inglesa, dos três aos dezoito anos (Granta).
O que em "As If" é a tentativa de descobrir onde se dá o nascimento da consciência moral e o que, aos poucos, transforma-se também num julgamento da função paterna e do casamento (do autor), passa pela dificuldade arcaica de dar conta da vida pela literatura. Num século de grande e riquíssima experimentação formal, de um lado, e marcado por uma história ímpar de atrocidades, de outro, são raros, contudo, os casos em que a literatura parece disposta a enfrentar isso que não é possível enfrentar, nem não enfrentar.
A incompletude do conhecimento, a resistência em trair com palavras um evento que não pode ser narrado, a memória emudecedora de uma vivência para além dos limites da expressão: esta é a contingência de toda testemunha de uma experiência traumática. E o testemunho parece a função primeira de um autor como Blake Morrison, a começar pelo testemunho de si. Nesses romances, então, dedicados à tarefa quase sagrada de manter a vida em palavras, conta menos o que se compreendeu do que o que não foi compreendido. Sua energia vem, paradoxalmente, de tudo aquilo que não conseguem dizer.
Mesmo o narrador imune, que não passou por circunstâncias excepcionais, parece presa da falta de meios, quando se decide a voltar para dentro de si: "Um homem de meia-idade, perdido no meio da vida, procurando sua infância numa floresta escura", escreve Blake Morrison. Quanto mais longe vai, mais se parece com a vítima de um trauma. E esse seu trauma (do qual ninguém escapa, mas que todos nós esquecemos diariamente, no mesmo movimento involuntário de lembrança ): esse trauma é o que se chama infância.
"Não acredito na existência de uma criança... cuja capacidade de amar não possa ser trazida à tona", escreveu Melanie Klein, em seu ensaio de 1937 sobre "Tendências Criminosas em Crianças Normais". É difícil imaginar o que Klein escreveria sobre as crianças de Liverpool, ou Brasília. Nem Blake Morrison, nem ninguém, hoje, sabe o que fazer com assassinos de dez anos. Seu livro, que é quase um manifesto pela recondução da jurisprudência inglesa, termina mesmo assim com uma pergunta. Pode-se dar crédito à força da figura, e ouvir com ele, de coração, não mais que uma pergunta retórica: "Será tão errado, afinal, venerar as crianças?".

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