São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Um feliz passado de escravidão

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O jornalista negro americano Keith Richburg passou três anos como correspondente do "The Washington Post" na África, onde cobriu desgraças variadas, como a guerra civil na Somália e os massacres em Ruanda. Ele sabe, portanto, como atrair a atenção do leitor -e o faz de maneira bombástica. Ele foi acima descrito como "negro" porque essa é a chave para entender "Out of America - A Black Man Confronts Africa" (Basic Books, US$ 24).
Richburg deu "graças a deus" por seu ancestral africano ter sido trazido como escravo para os Estados Unidos da América, e ter sobrevivido. Caso contrário, ele poderia ser uma das faces anônimas, inchadas e apodrecidas, que flutuavam rio abaixo na Tanzânia, rio que trazia milhares de cadáveres do genocídio em Ruanda.
Ainda mais explosivo para alguém que vive na época em que o afrocentrismo e o multiculturalismo se tornaram moda entre os negros dos EUA, ele rejeita ser chamado de "afro-americano". Quer simplesmente ser chamado de "americano", pois não sente nenhuma empatia com aquele continente no qual a maioria das pessoas têm a sua cor, mas vivem em meio de guerras, doenças e ditaduras mais ou menos ferozes.
Isso bastou para que o livro causasse reações raivosas entre intelectuais negros nos EUA, notadamente nas universidades, que, nos últimos anos, têm criado centros de estudos africanos e afro-americanos -verdadeiros guetos em que as faces brancas são raras. As críticas de Richburg contestam a própria razão de ser de muitos desses centros e da moda dos negros americanos de olharem para a África com orgulho, como contrapartida por serem uma minoria desprezada no próprio país.
O livro relata também a angústia por que ele passou ao narrar essas emoções. Os negros dos EUA se acostumaram a lavar a roupa suja em casa para não dar munição para o inimigo branco racista. De repente, vem um negro, um "traidor da raça", falando coisas horríveis sobre a "mãe África".
Richburg mostra como não é fácil ser negro nos EUA, entrar em uma loja e ter todos os olhos olhando para o intruso. Qualquer negro brasileiro deve ter sentido o mesmo. Mas isso não o impediu de descrever o que viu com honestidade, assim como uma visita a Auschwitz não impediu Robert Fisk, outro jornalista dos mais honestos, de escrever um relato arrasador sobre a bárbara invasão israelense do Líbano em 82.
O livro de Richburg era um dos temas de conversa entre os jornalistas que cobriam a derrubada do ditador Mobutu Sese Seko no Zaire (agora República Democrática do Congo). Vários achavam que o autor "pegou pesado", mas todos já passaram por experiências parecidas. Quem nunca cobriu algo na África sem ter tido uma AK-47 apontada com maior ou menor displicência, ou teve de pagar alguma forma de propina para funcionários ditos públicos?
Parte desse namoro dos negros dos EUA com o continente de seus ancestrais incluiu uma moda jornalística, a de se enviar correspondentes negros para cobrir o continente idem. Foi o caso, no Zaire, por exemplo, dos correspondentes da "Newsweek", do mesmo "Post" de Richburg, e do "The New York Times". O grupo de jornalistas conhecidos como "Africa hands", de "experts" africanistas, inclui também uma comunidade de brancos "expatriados", cujo comportamento o autor descreve com perfeição.
Richburg sabe que a comunidade negra dos EUA "instintivamente" tende a recuar ante o que ele tem a dizer, talvez porque os negros sejam hoje o "núcleo da subclasse urbana americana". "Um terço dos jovens negros de 20 e poucos anos está na cadeia ou em liberdade condicional."
Isso não seria desculpa para não falar com honestidade das mazelas africanas -e nisso ele inclui os brancos liberais, que evitariam fazer críticas por terem medo de serem taxados de racistas.
"Desculpe, mas eu estive lá. Eu tive uma AK-47 enfiada no nariz, eu falei com milicianos Hutu com machetes e o sangue de suas últimas vítimas manchando suas camisetas. Eu vi uma epidemia de cólera no Zaire, uma de fome na Somália, uma guerra civil na Libéria. Eu vi cidades bombardeadas até virarem entulho e outras cidades reduzidas a entulho porque seus líderes as deixaram apodrecer e decair enquanto levavam bilhões -sim, bilhões- de dólares para contas bancárias além-mar."
Isto é a África, a maior parte dela, e Richburg foi honesto a ponto de dizê-lo.

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