São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Os especuladores da beleza

FREDERICO GOYANNA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quatro artistas plásticos brasileiros (Lígia Clark, Hélio Oiticica, Tunga e Cabelo) foram selecionados para participar da exposição Documenta, que acontece até o dia 28/9, em Kassel, Alemanha. A apenas um arquiteto daqui (Paulo Mendes da Rocha) foi endereçado o mesmo convite.
Este fato, além de comprovar a vitalidade da produção desses artistas, confirma a suspeita de que houve, no campo das artes plásticas no Brasil, uma separação saudável entre artistas que trabalham para evidenciar a capacidade sensorial do homem e artistas que fazem do seu ofício mero meio de sobrevivência.
Os primeiros -são os que nos interessam- entenderam a necessidade de desenvolver conceitos artísticos pessoais, que, transparecendo em suas obras, suplantam os suportes físicos tradicionais, substituem as antigas assinaturas nos cantos inferiores das telas, ou nas bases das esculturas, e libertam-nas das expectativas aviltantes ditadas pelo mercado com o fim de torná-las mais vendáveis.
Assim, essas obras já engendram, na sua gênese, autonomia suficiente para se submeterem à contemplação de qualquer indivíduo, independentemente da sua origem/condição cultural, social ou econômica. Diante dessas obras ele, certamente, reagirá. Note-se o fato curioso de, a cada abertura de nova exposição -principalmente as individuais-, a mídia incensar a beleza, a ousadia, o talento do artista e de suas obras, enquanto aos poucos leigos que se deslocam até a galeria, não raro a primeira pergunta é: "Mas isso é bonito!?...".
Nesse estranhamento está o valor dos objetos ora lisos, ora peludos de Edgar de Souza, nos enormes gatos cabeça-corpo-círculos de Leda Catunda, nos desenhos de poucos traços capazes de causar intrigante comoção nos espectadores de Leonilson ou, ainda, no trabalho de outros -poderia talvez dizer vários- artistas plásticos que atuam no Brasil hoje e não têm, a priori, intenção de produzir algo exclusivamente belo.
A clara insubordinação desses artistas torna-se o melhor alerta à subserviência dos arquitetos jovens que, no afã de serem descobertos e ocuparem seus lugares no mercado, abrem mão de suas próprias especulações projetuais -quando elas existem- para se dedicarem a criar o que os leigos chamam de "prédios bonitos". Essa imposição subjetiva em que a finalidade do projeto de arquitetura passa a ser uma escultura primordialmente "bela", não importando que seja espacialmente estéril ou pouco eloquente, tornou-se regra por força de um axioma vil: pelo "belo" podemos cobrar mais caro, pensam os investidores.
Não há, obviamente, problema algum na possibilidade de o belo permear um dado projeto, realçando a dimensão estética de sua arquitetura. Há, no entanto, um grave equívoco quando arquitetos de fraca formação teórica passam a aceitar e a legitimar nos seus projetos os interesses e critérios próprios dos especuladores do mercado imobiliário para julgar o que seja belo, confundindo-o com o comercialmente aceito. Ao perguntarmo-nos hoje o que é -para o cidadão médio- um edifício belo, seria impossível responder sem simultaneamente definir algo comercialmente desejável.
Vejamos. Por ser vista como bem de consumo antes de objeto artístico, a construção pretensiosamente detentora do diferencial arquitetônico deverá possuir aspecto sólido, indicar segurança contra o mundo exterior, revestir-se de materiais caros -de preferência reluzentes-, dispor de tecnologia avançada e de alguma transcendência que afirme a superioridade desse conjunto, destacando-o do meio natural ou urbano onde ele se encontra.
O resultado dessa soma de fatores tão arrogantes será normalmente identificado com aquilo que se classifica de "belo". Não é difícil percebermos, assim, que, dissociada da sua intenção humanística e sensorial, a arquitetura passa a ser apenas "casa de veraneio do espaço" -como disse o filósofo francês Jean Baudrillard-, lugar de descompromisso do homem para com o ambiente social e natural externos aos seus muros.
A arquitetura contemporânea do Brasil assiste, então, a esse estranho acontecimento, em que o caráter paradigmático do belo -manipulado pelos interesses do mercado- voltou-se contra quem o busca. Tornou-se um sério entrave ao desenvolvimento daquilo que é intrínseco à arquitetura de qualquer tempo e lugar: sua capacidade de potencializar, "enlarguecer" e estetizar a relação do homem com o espaço vazio do seu abrigo e com a natureza que o circunda.
Um antídoto? Talvez algum arquiteto-detetive possa pressenti-lo numa visita ao Mube, com sua intrigante superposição de planos horizontais regida com rigorosa maestria por Mendes da Rocha, ou ao Sesc Pompéia, onde Lina Bo Bardi gargalha cercada de água, madeira, vazios e pedras, diante dos risíveis materiais tecnológicos e reluzentes, pelos quais as nossas elites urbanas pagam intermináveis prestações e parcelas intercaladas.

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