São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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A biografia imaginária de Mario Quintana

ELOÍ CALAGE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mario Quintana e eu começamos a trocar cartas e bilhetes logo nos primeiros dias de convívio, na redação do "Correio do Povo", no início dos anos 60, em Porto Alegre. Trabalhávamos em mesas colocadas frente a frente. Conversávamos tanto que, para não atrapalhar o trabalho dos outros, passamos a trocar cartas e bilhetes.
Em uma carta de 1967, escreve: "A propósito, quando começarás a escrever a 'Biografia Imaginária de Mario Quintana'? Garanto que há de ser poeticamente verdadeira". Mais tarde, mudou o título para "autobiografia inventada".
À minha maneira, vou trabalhando a encomenda. A alternativa menos angustiante foi começar com uma linguagem até então desconhecida para mim: a de uma exposição (leia texto ao lado).
Há algum tempo, relendo as cartas de Mario, compreendi que muitas delas foram escritas para serem publicadas. Lembro que ele costumava afirmar que nunca escrevera uma única linha que não fosse confessional. O inverso também é verdadeiro: Mario "vivia" aquilo que estava escrevendo. As imagens poéticas eram primeiro trabalhadas na fala, nas cartas, repetidas com formas novas, até que, um dia, surgiam surpreendentes em meio a um poema.
Máscara e desejo - "Não te esqueças daquele chinês que disse que uma carta escrita à máquina é um beijo dado de máscara..." (18/7/79).
"Tenho uma simpatia: é uma fita atada em torno do pulso, para conseguir o que desejo da vida."

Heráclito e os lanches - "Vou levantar-me, tomar uma baita taça de café preto com pudim de queijo e botar esta no correio" (30/8/77).
"Porque acabo de tomar duas batidas de abacate mais duas queijadinhas de coco mais duas taças pretas e mesmo por causa do raio do Heráclito (ah, esses gregos!) dizendo que a gente nunca toma banho no mesmo rio (Não gosto de 'tomar banho', acho a comparação meio suja: eu diria que a gente nunca atravessa o mesmo rio)".

Questão de estilo - "O Ray Bradbury é grande mesmo. Resiste aos transplantes para outra língua. Tem tanta vida que a gente não consegue saltar as descrições. Não tem palavras mortas" (12/1/68).
"Eu queria ir também. Mas estava numa. Com uma tremenda intoxicação que me fazia ir-me esfoliando, cheguei a ir para o hospital, de onde saí há pouco. Como continuo emagrecendo (perdi sete quilos em dois meses e meio), o médico requereu novos e severos exames, cujo resultado estou esperando para segunda-feira (hoje é sábado). Não te contei por pudor, porque odeio o 'estilo pobre viúva'±" (12/1/80).
Para finalizar, a visão muito pessoal do poeta sobre uma colega de trabalho que sempre o tratava com muita antipatia e que Mario transformou em personagem com o nome de "Dona Cômoda": "Olhando agora para a Dona Cômoda, noto que os seios dela, mesmo vestidos, são obscenos -quando muito, serviriam para uma marcha triunfal, em que eu fosse sentado em cima deles, abanando festivamente para todos os lados" (02/3/74).

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