São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Busto, cintura e cérebro

IVÁN IZQUIERDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cientistas de Copenhague, chefiados por uma mulher, verificaram que, em média, o cérebro do homem tem 21% a mais de neurônios que o da mulher. Sabia-se, desde as primeiras autópsias feitas por egípcios e gregos há 2.000 anos, que o cérebro masculino é maior que o feminino. A notícia, portanto, era de se esperar. Certamente, não de desesperar.
O homem costuma ser mais alto, mais largo, mais pesado, mais ágil, mais forte e mais veloz que a mulher. Seus órgãos (fígado, rim, ossos), em média, são também maiores e têm mais células.
Tudo isso faz parte das diferenças anatômicas e funcionais entre os sexos que, junto com as mais óbvias diferenças entre os respectivos aparelhos genitais, caracterizam cada um deles. Entre outras coisas, o tamanho do corpo e dos órgãos é regulado pelos hormônios. A secreção hormonal da mulher é distinta da do homem.
Competições
As exceções à regra acima, porém, são numerosíssimas. Julia Roberts ou Claudia Schiffer, protótipos da beleza feminina, são grandalhonas. Humphrey Bogart, que foi adorado pelas mulheres durante décadas, foi franzino.
Ser maior, mais forte ou mais ágil equivale a ser melhor? Em competições atléticas, pode ser. Mas Maradona foi menor e de aspecto menos atlético que a média de todos os seus oponentes e reinou absoluto no futebol mundial durante uma geração.
Nas competições, esses 21% a mais de neurônios que o homem tem não se refletem no desempenho: os recordes mundiais masculinos nos 100 m, 200 m e 1500 m rasos e na maratona são só 6% a 10% superiores aos das mulheres.
Só nos saltos a diferença a favor dos homens se aproxima dos 20%. Mas aí a estatura e o comprimento dos membros passam a ser fatores muito preponderantes.
Em atividades criativas ou intelectuais, o minúsculo Ravel, homem de poucas, mas boas células, superou muitos gigantes.
O número de neurônios é somente um fator, entre outros, que determina o desempenho do sistema nervoso, que por sua vez depende da região cerebral e da função analisada.
Em várias regiões do cérebro, o número máximo de neurônios é atingido entre os 10 e 12 meses de idade. Quando a criança aprende a caminhar, desaparecem abruptamente muitos neurônios. Depois, até o fim da vida, há uma lenta e progressiva perda neuronal.
Rendimento
Porém, o rendimento do meu cérebro hoje, aos 59 anos, quando já não são demasiados os neurônios que me sobram, é vastamente superior ao que eu tinha com um ano de idade. Hoje falo várias línguas, exerço uma profissão, e além disso falo, caminho, pulo e corro melhor do que naquela época feliz.
Aos 80 anos, a perda neuronal dos seres humanos é imensa, e abrange áreas nobres do cérebro. Porém, depois dos 80, a rainha Vitoria, Konrad Adenauer e Deng Xiaoping souberam governar em situações difíceis. Ronald Reagan, já com doença de Alzheimer (que se caracteriza pela perda acelerada de neurônios) ganhou a Guerra Fria -no estilo Forrest Gump, é verdade. Com idade avançada, Giuseppe Verdi compôs suas óperas mais complexas e Jorge Luis Borges escreveu vários dos seus melhores poemas e aprendeu anglo-saxão antigo.
Assim, o rendimento executivo, físico, intelectual, a memória e a inteligência não parecem ser muito ligadas ao número de neurônios. Certamente essas grandes funções cerebrais dependem das conexões entre as células nervosas, que são muito difíceis de quantificar.
Cada neurônio faz contato (sinapse) com um número muito elevado de outros neurônios. Dependendo da região examinada, esse número varia entre 100 e 100 mil.
Isso quer dizer que o número de sinapses possíveis na mulher equivale ao total de 19 bilhões de neurônios elevado a uma potência de 100 a 100 mil. No homem, o total de sinapses corresponde ao total de 23 bilhões de neurônios elevado à mesma potência. Temos então dois números que, na falta de possibilidade de medi-los com algum grau de precisão que se aproxime de 21%, é mais prudente considerar como equivalentes.
Ninguém sabe se a mulher tem mais ou menos sinapses que o homem, nem em que lugar do cérebro ela as tem. Certamente em alguns lugares deve ter mais e em outros deve ter menos.
Há evidências de que o número de neurônios e o de sinapses guardem uma correlação positiva com algumas funções cerebrais. A estimulação ambiental ou o simples uso promove um aumento de ambos os números em algumas regiões do cérebro.
A diminuição de neurônios em certas áreas do cérebro causa distúrbios diversos, como a doença de Parkinson e o mal de Alzheimer. Mas fora dessas situações localizadas e específicas, há pouca correlação entre número de células ou sinapses e função cerebral. Pelo contrário, Adenauer, Borges e a rainha Vitoria, desde o além, parecem sugerir que quanto melhor consigamos fazer funcionar as poucas células que existam, melhor será nosso desempenho.
Num famoso jogo de futebol entre o Grêmio de Porto Alegre e o Estudiantes de La Plata, pela Taça Libertadores da América de 1983, o time gaúcho estava ganhando por 3 a 1 e seu adversário dando um show de mau comportamento, até que acabou tendo quatro jogadores expulsos. Os sete restantes decidiram se dedicar a jogar futebol em vez de fazer bagunça e conseguiram empate por 3 a 3.
Com sete jogadores dedicados, o Estudiantes funcionou melhor do que com 11 mal comportados e, portanto, ineficientes. A Alemanha, a Inglaterra ou o Japão, com muito menos habitantes que o Brasil, fazem funcionar seus países muito melhor. Howard Hughes foi o homem mais rico deste planeta. Vivia confinado num apartamento, sem ver ninguém. Quem exercia suas funções como ser humano melhor, ele ou seu vizinho, que ganhava US$ 1.000 por mês e vivia se divertindo e contando piadas?
Diferenciação sexual
Certamente algumas funções cerebrais são exercidas de forma diferente pela mulher e pelo homem. Isso faz parte da diferenciação sexual, assim como a relação entre busto, cintura e cadeiras, o tom de voz e a delicadeza dos movimentos. Se isso tem ou não a ver com a diferença entre o numero de neurônios em uma ou outra região cerebral, não sabemos.
O número de sinapses em cada região, a eficiência de seu funcionamento, a regulação hormonal e os fatores ambientais e culturais podem ter algum papel importante nas diferenças comportamentais ou de inclinação intelectual entre homens e mulheres.
O homem tem se destacado historicamente por sua maior agressividade e por uma menor capacidade de interação social e de se orientar no espaço, mas também por sua maior propensão ao pensamento abstrato. Grandes assassinos, ermitões, desorientados, filósofos, compositores e físicos teóricos costumam ser homens.
O homem tem mais propensão ao alcoolismo e a mulher à depressão. Como tudo isso vem ocorrendo há muitos séculos e através de culturas muito diferentes, é difícil explicá-lo só por causas sociais. Talvez tenha mesmo relação com diferenças de estrutura e função de áreas cerebrais e sua regulação. Acontecia em 1890, quando a vida social das mulheres era muito restrita e poucas, por exemplo, iam às universidades. Acontece hoje, após muitas décadas em que a maioria dos alunos das escolas de música, filosofia ou ciências em geral são mulheres. Acontece no machista Japão e nos Estados Unidos de Camille Paglia.
Se dedicar ou não à física teórica, ser um pouco mais ou menos agressivo ou se orientar melhor ou pior no espaço não indicam se uma pessoa é melhor do que outra, mais inteligente, com maior capacidade ou com melhor futuro.
Cruzamentos
Comparar as habilidades respectivas de homens e mulheres, ou seu número de neurônios, ajuda pouco. O importante é conseguir que essas habilidades se complementem e interajam entre si. Como fazem os neurônios. Precisamos de neurônios que enxerguem interligados com neurônios que ajam, e ambos ligados com outros que entendam. Precisamos de Cole Porter e Ella Fitzgerald, Cecília Meirelles e Mário Quintana, e de quem os inspire, escute e leia.
O número de neurônios é mais uma diferença entre os sexos. Não quer dizer nada intrinsecamente bom nem ruim e não explica nem justifica nada. Concordo com os franceses: "Vive la différence". Quanto mais diferenças, melhor. Da variedade surge o mundo. Os seres humanos nascem do cruzamento de genomas de ambos os sexos, nos quais nada menos que um cromossomo inteiro é diferente. E não é à toa que cruzamentos entre genomas muito parecidos costumem dar frutos defeituosos, e que de genomas diferentes surjam os melhores frutos.

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