São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Vestígios de um lugar de liberação

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Este é o meu primeiro artigo do cárcere de Roma. Mas não quero voltar aqui às razões desta procedência estranha: outros já o fizeram nas páginas de crônica, com maior objetividade e distanciamento do que o autor poderia colocar em suas palavras.
Mencionar o acontecimento que se deu será suficiente: Toni Negri, depois de 14 anos de exílio na França (em decorrência de condenações políticas depois das lutas dos anos 70, depois de já ter cumprido quatro anos e meio de prisão preventiva, depois de ter saído da prisão em decorrência de sua eleição a deputado), então voltou à Itália para se entregar à Justiça. Foi um ato voluntário, impelido por uma única necessidade: resolver, junto com o seu problema, o de outras centenas de companheiros seus, que ainda estão languescendo nas cadeias pátrias e no exílio; para levantar, deste modo, o tema da anistia. "Sed de hoc satis!" Há um problema, subjacente a este acontecimento, do qual gostaria de falar aqui, e é o da relação entre memória e justiça.
Evidentemente, não posso enfrentar este problema em sua inteireza: a história da filosofia o inclui entre os mais complexos. A teodicéia (ou seja, a justificação da ação de Deus na história) e a dialética (ou seja, a justificação da história do ponto de vista da razão do vencedor) representam, com efeito, respostas ao problema da relação entre justiça e história, entre justiça e memória. A mim interessa-me um lado bem pequeno desta maranha: a relação entre memória política e justiça política, ambas tomadas num momento singular e consideradas do ponto de vista da subjetividade dos atores.
Neste quadro existem duas memórias e duas justiças, quase sempre uma armada contra a outra. A sua relação é de luta. O que é justo na ação de uma parte torna-se injusto na memória da outra parte; e a memória de uma parte anula a justiça da ação da outra. Esta operação de neutralização é o que aqui resulta particularmente interessante. Vale dizer que a vitória de uma parte sobre a outra tem efeitos ontológicos, determina um cancelamento de memória para os vencidos, estabelece a unilateralidade do conceito (e da relativa função) de justiça. O vencedor determina justiça e memória. Mas até que ponto este evento se instala no âmago da história? Até que ponto a vontade do vencedor pode ter efeitos totais?
Entre os presentes envenenados que o século 20 nos deu, há o totalitarismo. Não estou falando somente daquele com "T" maiúscula. Este desagregou as sociedades democráticas e, parafraseando Benjamin, destruiu os elementos ligados a seus sonhos e seus primórdios, renegando a solidariedade com uma sociedade futura; com a própria humanidade. Não, eu estou falando mesmo do totalitarismo com "t" minúsculo, daquele pequeno, que, numa sociedade dominada pela velocidade das imagens e da comunicação, faz da relação entre justiça e memória uma vicissitude de interdições, de ostracismos, de exclusões, tão frágeis quanto onipresentes; um enredo de linchagens e falsificações, tão violentas quanto permanentes.
Esta é a relação menor -totalitária, mas menor- que aqui me interessa -que já resulta mais destrutiva que tudo o que as grandes máquinas do Totalitarismo conseguem produzir. Em relação a estas últimas, de fato, as vicissitudes horrorosas do século 20, se não nos imunizaram, de algum modo nos dispuseram a uma crítica atenta e ininterrupta. Mas, contra a pequena e alastrante redução de justiça e memória a "urgências" do poder, o que nos salva? Daquela droga da falsificação, injetada a cada dia, quem nos preserva? Como é que a consciência pode evitar uma contaminação?
Estou colocando questões ingênuas? Claro. Qualquer publicitário ou jornalista pode me responder que a razão de Estado de outrora transformou-se hoje numa máquina arborescente e eficaz, articulada e coerente para a produção da "justiça" e para a manipulação da memória histórica. Mas o problema permanece: até que ponto este acontecimento se instala no âmago da história? Como é possível, no pós-moderno, reivindicar outra memória e pedir outra justiça? Certamente esta questão não é ingênua. Com efeito, tenta repropor o tema da práxis e da responsabilidade no interior de um mundo que, em sua própria estruturação, predetermina os seus sentidos. Como impedir que a justiça do vencedor elimine a memória dos vencidos? Como reabrir, na vida cotidiana, uma relação entre justiça e memória que não seja unilateral e repressiva?
Eu não tenho respostas para esta questão. E não me parece que se possa dar uma resposta reduzindo a nossa condição a um evento kafkiano (ainda quando assim for) nem se entregando, como faz Benjamin, a um "angelus novus" da revolta (ainda que se tenha feito esta experiência) que transcende a violência da falsificação. Não, deve haver algo de real que permanece no fundo da história -ali onde a derrota se deu e foi sofrida-, algo que é como uma pequena, mas irresistível, modificação da história e do homem. Algo inesquecível. Talvez este seja o novo Prometeu da era da comunicação pós-moderna, aquele que rouba uma centelha do ciúme dos deuses para doá-la aos vencidos.
Eu realmente não sei se esta seria a resposta à questão posta. Talvez seja somente a indicação de um lugar de liberação. Ainda que seja no fundo de uma cadeia.

Tradução de Roberta Barni.

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