São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Vocês querem bacalhau?

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Qual outra área do entretenimento estaria sujeita a um escracho como esse que o TV Folha publica hoje como reportagem de capa? Talvez nenhuma.
Jornalistas e colaboradores da Folha, fomos convidados a "votar" numa espécie de lista dos "20 piores" da televisão. Não fazê-lo seria um sinal de "falta de humor", de antipatia, pretensão e empáfia para alguém que já é considerado suficientemente ranzinza, rabugento e "velho" nas opiniões que emite.
Mas, ao aceitar a "brincadeira", é preciso que se pense um pouquinho sobre seu significado. A ninguém é dado o direito divino de se considerar acima ou imune ao objeto que analisa. Seria uma tolice imaginar que o crítico de TV não mimetiza, queira ou não, os piores traços daquilo que comenta.
Marcelo Coelho já chamou a atenção para o fato de que mesmo o gênio de José Simão -inegável- tem algo de concessivo, na medida em que reproduz, na sua própria escrita, os cacoetes da TV que ele trata de achincalhar.
Mas voltemos à enquete do TV Folha. Sem eufemismos, o que pode significar escolher entre Amaury Jr., Otávio Mesquita, Athayde Patreze ou Luciano Huck? Todos são suficientemente desprezíveis para que apenas um mereça levar o troféu.
O raciocínio vale para quase todos os itens da pesquisa. Alguém duvida da arbitrariedade de cada voto? Mas não é isso que mais interessa aqui. O problema maior é que a própria iniciativa confunde-se com aquilo que ela pretende ridicularizar.
A ironia da proposta acaba resultando numa paródia -será involuntária?- dos programas de auditório. O crítico de TV é alçado assim à condição de clone de Aracy de Almeida -e isso na melhor da hipóteses. É mais provável que seja confundido com um Leão Lobo, um Nélson Rubens ou qualquer outro desses monstros.
Isso leva a outra conclusão inevitável. A vitória da TV, hoje, não se mede apenas pelos seus índices de audiência. Mede-se principalmente pela sua capacidade de contaminar todo discurso que se faça a seu respeito, a ponto de enquadrar eventuais "cricris opositores" aos termos que não são mais deles, mas sim dela, TV.
É muito provável que essa hegemonia cultural da "telinha" tenha alcance planetário, mas o impacto de seus efeitos é maior em sociedades como a brasileira, onde o enraizamento de formas urbanas de convivência e o surgimento da TV são fenômenos quase simultâneos. Parodiando o antropólogo Claude Lévi-Strauss, passamos, por assim dizer, de uma situação de barbárie para outra de decadência sem termos conhecido a civilização.
Diante dessa enrascada brutal, saber se Ratinho é pior que Ney Gonçalves Dias ou se Cid Moreira é mais pitoresco que Barros de Alencar é mais ou menos como brincar de varrer a sala de um prédio que está pegando fogo.

PS: Façam suas apostas, senhores! Vão indo que eu não vou.

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