São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 1997
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Deus vem depois do recreio

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma das sabedorias da vida é conseguir ver o lado positivo de tudo. Por isso você que sofre com os sermões entediantes dos professores de matemática e química pode ficar mais contente: poderá ter profissionais do ramo na sala de aula.
Trata-se de lei sancionada pelo nosso presidente -o que era ateu, lembra?- que regulamenta o ensino religioso ecumênico (que engloba todas as religiões) nas escolas públicas de primeiro grau.
Ou seja, nossas escolas (que não conseguem nem mesmo reter a maioria de seus alunos até a conclusão do curso e têm uma qualidade de ensino quase... pecaminosa) podem ensinar também uma ciência muito precisa chamada fé.
No mínimo, é um atraso. A separação entre igreja e Estado é coisa da época da Revolução Francesa. Usar dinheiro público para doutrinar crianças é vergonhoso. A escola deve preocupar-se em transmitir os conhecimentos científicos alcançados pela humanidade, em vez de ficar repetindo as mesmas crendices de Adão e Eva quando a Teoria da Evolução já é mais do que aceita.
A fé é algo muito pessoal, subjetivo. É inconcebível que um professor consiga transmitir espiritualidade por meio de provas e deveres de casa. E, se um aluno for pego colando na prova de religião, como é que fica? O professor-doutrinador vai se contentar em mandá-lo pra coordenadora ou o envia direto pro purgatório?
Já imaginou quando houver briga na aula? Vai ficar o pároco dizendo pra dar a outra face, até que alguém finalmente morra e possa se dar a extrema-unção. E, quando faltar merenda, será que o padre vai ficar esperando a multiplicação dos pães? Vai dar hóstia aos famintos?
Claro que não. Lugar de religião não é na escola, mas, sim, nas casas dos alunos e em suas congregações religiosas. Pode alguém aí dizer que não será um ensinamento de fé e crenças, mas, sim, de princípios éticos, tão em falta neste país.
O problema com essa idéia é que -e aí os que atribuem certos poderes divinos aos representantes religiosos vão ter de me desculpar- tanto padres quanto pastores e rabinos são pessoas de carne e osso, com inúmeros defeitos. Alguns deles, aliás, bastante perigosos para o convívio em sala de aula, como ficou mais uma vez evidente em recente processo nos Estados Unidos. A Igreja foi condenada a pagar uma multa de 120 milhões de dólares por causa de padres que resolveram mostrar, digamos..., o lado mais prazeroso do sacerdócio aos indefesos coroinhas.
Quando aluno, lembro-me de ter vivenciado os defeitos dos professores de religião (não é isso que você está pensando): quando descobriu que eu era de uma religião diferente da sua, o "santo homem" começou a, misteriosamente, perder os meus trabalhos. O que leva ao último dos males do ensino religioso: a intolerância.
Quando se ensina uma religião, implicitamente se desprezam as outras. A tendência é marginalizar aquele que acredita num Deus diferente. Ou, pior, deturpar a história e esquecer episódios pouco elogiáveis da religião abordada, como as fogueiras onde a Igreja Católica queimava seus hereges na Idade Média. Ou seja, é muito problema pra pouca possibilidade de melhora.
Fica então a pergunta: por que este governo se dispõe a reacender o debate sobre um tema arcaico como esse? A resposta, obviamente, é uma questão de fé. Fé em que, agradando à igreja, o nosso presidente ateu se livre das macumbas e facilite sua via-crúcis até chegar ao Monte da Purificação (também conhecido como Palácio do Planalto) e fique lá mais quatro anos -ou, melhor, até que venha o Messias.
Com a bênção do bispo e o apoio de seus apóstolos Toninho Malvadeza e Serjão Caterpillar, o enviado celeste Fernando Henrique espera que a fé não mova só montanhas, mas principalmente urnas, pois é do mais votado o Reino dos Céus. Em nome do pai, do filho e da reeleição.
Amém.

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