São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 1997
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No sétimo dia, elegemos a morena do Tchan

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Minha amiga bateu na mesa com o punho direito cerrado:
- O Brasil tem de parar de rebolar.
Embora não me sentisse diretamente, responsável, perguntei:
- Por que parar de rebolar?
- Tem de parar de rebolar. Há coisas boas aqui, arte, turismo e só se mostram bundas, bundas, bundas.
- E daí?
- Perguntando e daí você jamais vai entender o turismo sexual, milhares de crianças se prostituindo.
- Isso tem a ver com a economia, gente com dinheiro, países pobres. A escolha da morena do Tchan, pela televisão, foi o velho concurso de miss. Visto de outro ângulo, é claro.
- Bem mais vulgar, você quer dizer.
- Talvez um pouco mais vulgar. Ou mais sexy. As candidatas tinham ursinhos de pelúcia, como as misses, tinham mãe, como as misses.
- Foi um espetáculo rasteiro, de tarde de domingo. Nem se tivessem com "O Pequeno Príncipe" na mão, lembrariam as misses.
- Vulgar e rasteiro são palavras delicadas, quando há sexo no meio. Elvis foi considerado vulgar, em alguns lugares se proibiu o rock.
- Não há comparação. Elvis era homem e o rock uma cultura, pô. Além do mais, essas mulheres são muito gordas.
- E daí? A partir de que silhueta seria permitido rebolar? Por que não democratizar o padrão de beleza das revistas e da moda?
- Democratizar? Democracia por acaso é bunda na TV?
- Talvez seja. Também. Além do mais, as luzes da TV, a atmosfera de domingo à tarde nas casas, às vezes há um lado da ginástica aeróbica nisso tudo.
- Há malícia também, comercialmente explorada.
- Tudo bem, há malícia. Mas parece que elas estão conscientes de seus movimentos. E que gostam.
E os programas têm grande audiência.
- O que significa ter grande audiência?
- Isso pode ser um dado da cultura sexual brasileira. Parar de rebolar lá fora pode querer dizer que isso não existe aqui dentro. Ou vamos parar de rebolar no próprio país?
- Isso não pode ser a marca do Brasil.
- Quem somos nós para definir a marca do Brasil? O que tem de ser tem muita força.
- Quer dizer que você aceita passivamente.
- Obrigado por não dizer: quer dizer que você aceita, rebolando. Mas não é esse o problema. Sinto que isso tem uma história que vem da colônia.
Algo secular, complexo.
- Mas não justifica a passividade.
- Nem proíbe o rebolado. Estamos condenados aos mesmos domingos.
- Às mesmas bundas.
- Sabe de uma coisa: o que é que você tem contra a bunda?
- Contra ela em si, nada. Contra uma vulgaridade desumanizadora, sim, tenho algo contra.
- O que é humano? Esses milhões de seres fixados na TV são de que galáxia?
- Mas podem avançar, com outro tipo de espetáculo.
- Não adianta outro tipo de espetáculo. Ela ia acabar reaparecendo, nem que seja na imagem de uma professora escrevendo no quadro negro.
- Vê se entende: não proponho reprimir. Ela pode reaparecer na imagem da professora. Em mil outras. Talvez fosse melhor assim, longe da fronteira do grotesco.
- A palavra grotesco pertence àquele compartimento onde estão vulgar e rasteiro. Tornam-se explosivas quando se entrelaçam com sexo.
- Isso você já disse, mas não vai confiscar o meu senso de grotesco.
- Também não quero perder o meu. Proponho apenas que tudo fique um pouco como está.
- Estagnado?
- Não. Acontecendo. Enquanto isso tentamos entender. Lembrando, é claro, de pedir, toda noite, perdão pelos nossos pecados.

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