São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 1997
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Cidade celebra a história afro-americana

ROBYN MEREDITH
DO "TRAVEL/THE NEW YORK TIMES"

Earl Calloway, um visitante de Chicago, parou no santuário de uma igreja batista no centro de Detroit e começou a cantar, sem acompanhamento, "Live a-Humble", spiritual afro-americano.
"Eu queria cantar nessa igreja", explicou ele numa sala cheia de estranhos que participavam com Calloway de um passeio pela igreja que serviu de última parada para 5.000 escravos negros a caminho da liberdade no Canadá.
Detroit é um destino poderoso para todos aqueles interessados na história afro-americana.
No século 19, a cidade abrigou algumas das maiores "estações", ou esconderijos, da chamada "Underground Railroad" ("ferrovia clandestina"), uma rede de abolicionistas que ajudava escravos a fugir.
Neste século, ondas de negros saíram do sul para trabalhar nas montadoras instaladas na cidade.
Nos anos 60, Detroit ecoou para o mundo o som da gravadora Motown. Hoje, com uma população constituída por 76% de negros, é a maior cidade dos EUA de maioria afro-americana.
Durante a primavera, o maior museu nacional dedicado à história e à cultura negras abriu suas portas no distrito cultural.
O novo Museu de História Afro-Americana é parte do significativo grupo de locais históricos relacionados aos negros na cidade.
Toda visita deve começar pelo museu, um prédio com telhado envidraçado, portas de bronze e uma poderosa exibição. "Das Pessoas: a Experiência Afro-Americana" é centrada numa reprodução de um navio negreiro com 40 estátuas em tamanho natural.
Em volta do navio há oito pequenas exposições que, em conjunto, fazem uma retrospectiva da experiência negra nos EUA.
Essas exposições incluem artefatos da África, mapas da "ferrovia clandestina", fotos de linchamentos e reproduções de uma cabine eleitoral com exemplos das difíceis perguntas que eram usadas para evitar que os negros votassem no sul dos EUA há quatro décadas.
Em salas próximas, o visitante pode ouvir a variedade de compositores afro-americanos -tudo, do blues da Motown a sinfonias, está ao alcance de um botão.
Até 7 de setembro, o museu também apresenta "África: Um Continente, Muitos Mundos".
A exposição itinerante é um passeio pelas culturas do continente, dos nômades do deserto aos cosmopolitas moradores das cidades.
Artes plásticas
A uma pequena caminhada na direção noroeste fica o Instituto de Artes de Detroit, o principal museu de arte da cidade.
Ele tem uma grande coleção de arte, da Antiguidade aos tempos modernos, e é conhecido principalmente pelos afrescos de Diego Rivera sobre a indústria local.
Sua coleção de obras de afro-americanos inclui "Quilting Time", um mosaico de Romare Bearden, e obras de Robert Scott Duncanson, Edmonia Lewis, Glen Ligon e Jacob Lawrence.
Até o próximo dia 4 de janeiro, "Esplendores do Antigo Egito" traça a história da arte egípcia de 3.500 a.C. até 6 d.C.
A mostra inclui estatuária, jóias, sarcófagos e cerâmicas, além de uma estátua em tamanho natural de Hemiunu, supostamente o arquiteto da pirâmide de Quéops, de aproximadamente 2.530 a.C.
Sons afro-americanos
Depois dos automóveis, Detroit é provavelmente mais associada ao som de artistas da Motown, como The Supremes, The Temptations e Smokey Robinson.
A Motown Records Corporation (companhia de discos Motown) começou com Berry Gordy Jr. numa casa de dois andares que ele apelidou Hitsville USA -algo como cidade do sucesso EUA.
Na casa, no 2.648 West Grand Boulevard, hoje funciona o Museu Histórico da Motown.
Visitantes assistem a um filme sobre os primórdios da Motown e seus sucessos, antes de prosseguir por murais com discos de ouro e platina e roupas de bandas, além do Studio A, de onde saíram muitos dos hits da gravadora.
Há ainda uma excelente exposição da Motown, inclusive com um vídeo que ensina a coreografia de The Temptations para "My Girl", no Museu Henry Ford, no subúrbio de Dearborn.
Anexo ao museu fica o Greenfield Village, espécie de parque temático histórico onde estão a casa de um escravo liberto e construções de uma fazenda da Geórgia transferidas para Dearborn.
A "ferrovia clandestina"
Como Detroit é separada do Canadá apenas pelo rio homônimo, escravos fugidos apelidaram-na "meia-noite", a última escala da "ferrovia clandestina" que os levava à liberdade no vizinho, onde a escravidão já era ilegal.
Há pelo menos 7 rotas através do Estado de Michigan, com cerca de 200 "estações". As mais bem documentadas de Michigan foram o Finney's Barn (celeiro) e a Segunda Igreja Batista.
Um marco na esquina das ruas State e Griswold mostra onde ficava o celeiro, mas a igreja continua no 441-461 da Monroe Avenue.
Conforme os mapas coloridos no seu porão, a Segunda Igreja Batista era uma das maiores "estações" da "ferrovia clandestina" e a última parada da "rota 4", que ia do sul de Michigan até Detroit.
No topo de uma escada estreita que leva ao porão no qual os escravos escondiam-se, são exibidos cartazes de "procura-se" de antes da Guerra de Secessão.
Um oferece prêmio de US$ 40 mil -mais que o suficiente para construir uma mansão na Detroit de então- da Associação dos Proprietários de Escravos pela captura de Harriet Tubman, sob a acusação de "roubar escravos".
No pequeno quarto ao pé das escadas, escravos passavam a noite, além de receber comida e roupas, antes de cruzar o rio rumo ao Canadá. O quarto acomodava 9 pessoas em beliches e 5 no chão.
Para sentir por que Detroit era uma parada tão popular da "ferrovia clandestina", siga até a esquina da West Jefferson Avenue com Sixth Street e observe o Canadá do outro lado do rio.
Esse estreito trecho do rio Detroit era um dos pontos de travessia mais populares.
Ali não há atualmente qualquer marco, mas Rosa Parks, que tornou-se um símbolo da causa dos direitos civis quando recusou-se a sentar na parte de trás de um ônibus em Montgomery, Alabama, mora na vizinhança.
O lado de lá
Dada a importância de Detroit como a última parada da "ferrovia clandestina", cruzar a ponte Ambassador para o Canadá é um bom final para o passeio pelos sítios históricos afro-americanos.
Dois sítios valem a viagem. Perto do vilarejo de Puce, Ontário, a menos de 32 km de Detroit, o John Freeman Walls Historic Site (sítio histórico) e o Underground Railroad Museum tentam recriar a jornada pela "ferrovia clandestina".
Foi nesse local que Walls, um ex-escravo da Carolina do Norte, estabeleceu-se em 1848 com sua mulher, tornando-se fazendeiro.
Caminhadas pelas várias construções com lembranças da fuga da família para a liberdade são dirigidas por descendentes de Walls.
Depois, visitantes seguem uma trilha arborizada, ao longo da qual escutam latidos, representando as perigosas viagens entre as "estações" da "ferrovia clandestina".
Cerca de uma hora adiante fica o Uncle Tom's Cabin Historic Site (Sítio Histórico da Cabana do Pai Tomás), em Dresden, Ontário.
O reverendo Josiah Henson, o ex-escravo de Maryland imortalizado por Harriet Beecher Stowe na sua famosa novela -publicada no Brasil como "A Cabana do Pai Tomás"-, estabeleceu ali um refúgio antes da Guerra de Secessão.
O sítio é um pequeno complexo com uns poucos prédios restaurados e um museu, mas já foi constituído por 200 acres que abrigavam uma escola profissionalizante.
Barbara Carter, descendente de Henson, administra o museu e, se interrogada, vai lembrar que, no livro de Stowe, o Pai Tomás era um sujeito honrado e confiável.
Companhias itinerantes do sul distorceram o sentido original ao retratá-lo como um colaborador dos brancos, dando ao termo Pai Tomás um sentido pejorativo.
No museu, os visitantes assistem a uma apresentação sobre Henson. Do lado de fora, fica a casa de madeira na qual ele vivia e a igreja onde pregava. A igreja ainda tem o órgão e o púlpito originais.

Tradução de Edson Franco e Claudio Garon

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