São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 1997
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Um sentimento a mais

JANIO DE FREITAS

Os sentimentos que a morte dos admiráveis provoca, essa ternura dorida e opressora, devia ser poupada de intromissões como a indignação com os pesares hipócritas e as falsas reparações. No Brasil parece impossível preservar apenas os sentimentos originados do encontro de memória e perda.
Ouvir ou ler que o governo vai agora efetivar as providências que Betinho reclamou por mais de dez anos, para tornar eficiente e seguro o sistema de sangue e de sua fiscalização, dá vontade de dizer na cara de certas pessoas que estão apenas mentindo mais uma vez. As providências estiveram ao seu alcance, como estão hoje, e não lhes mereceram atenção.
O mesmo vale para aqueles bandos que dominam a Câmara e o Senado e que lá enfurnaram, em alguma gaveta onde talvez se guardem também as propinas da corrupção, os projetos de lei e de regulamentações que estariam votados há anos, se houvesse algum interesse pelo problema das transfusões que, no Brasil, não se sabe se melhor servem à vida ou à morte. Um gesto de justiça, aqui, seria agarrar esses governantes, ministros e parlamentares do descaso abusado e aplicar-lhes uma transfusão, ainda que não fosse contaminada pela Aids que injustiçou Betinho, ao menos com a mesma hepatite C que antecipou sua morte. Muito extremada, furiosa mesmo, essa idéia? Se assim for, nem por isso se iguala aos feitos governamentais e parlamentares, porque, mera e frustrada idéia, não se iguala a eles no crime que é negar, por omissão ou por vantagens materiais, providências essenciais à preservação da vida mesma de milhões de pessoas.
O acaso juntou na mesma edição da Folha as considerações de Fernando Henrique Cardoso sobre Betinho e um artigo de Marta Salomon, que vem revelando como articulista o mesmo talento e a mesma independência de repórter. Diz Fernando Henrique que Betinho "vai permanecer na nossa memória como uma motivação para que nós nunca nos esqueçamos da questão social".
E Marta Salomon, o que diz? Diz o que descobriu nas telas do Siafi, que registram as movimentações financeiras do governo. E nas quais está registrado que o governo do presidente que não esquece a questão social, passados sete meses do ano, deu ao programa de combate à mortalidade infantil apenas 12,59% do dinheiro que o Orçamento anual lhe concede.
O programa de reforma leva o governo a intensa campanha de propaganda, para obter do papa referências mais brandas ao problema. Mas, está lá no Siafi, o programa social da reforma agrária recebeu apenas 6,28% da sua verba. O restante dos programas e obrigações sociais do governo não pode ter outro tratamento. O privilégio do dinheiro mais farto, entre os dados colhidos por Marta Salomon, é de projetos ligados à privatização, o porto de Santos e estrada Ferronorte. O mesmo que é feito nas estatais de telefonia, em preparo com investimentos bilionários para melhor proveito dos futuros donos privados.
Betinho viveu sem mentiras.

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