São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 1997
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Filósofo faz 'experiências de pensamento'

OLGÁRIA CHAIM FÉRES MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"-Qual é o chefe que dirige e comanda seus exércitos?
-Não são súditos nem escravos de ninguém."
Ésquilo, "Os Persas"
A rainha persa Atossa pergunta ao mensageiro que anuncia a derrota que homens poderiam ser suficientemente destemidos para enfrentar o Grande Império, o Rei dos Reis.
Foi a Atenas democrática -o povo em armas- que repeliu o invasor, embora a desproporção entre os exércitos devesse dar êxito a Xerxes. Os gregos, porém, confiavam na vitória, pois os persas, em suas guerras de conquista, incendiavam os templos dos deuses dos vencidos.
Quanto aos gregos, sabiam que, mesmo sangrenta e cruel, uma guerra é assunto dos homens. Não inventavam "inimigos transcendentais". Atenas repele o invasor pelo senso da medida justa no mundo humano.
Próprias à pólis eram também a igualdade e a liberdade. Por não estarem inscritas na natureza -caótica, desmedida, casual- são desejadas e construídas através da palavra-logos harmonioso e medida sábia.
Se o homem grego não pode intervir na natureza, deve discriminar coisas que em nada dependem de nós, daquelas que só em parte dependem de nossa vontade, bem como das que dependem inteiramente de nós.
Sua força diante do arbítrio da natureza provém dos sentidos de posologia e ponderação, que são, simultaneamente, a liberdade. Essa só pode exercer-se a partir de artifícios que definem a cidadania.
Os homens, desiguais por natureza, são iguais na prática das "palavras". Lembremos, aqui, Xerxes decidindo por um sonho o ataque à Grécia, pois acreditou "ter diante de si um homem alto e de rosto belo, flutuando".
O fantasma é imediatamente tomado como aparição ameaçadora. O rei não a interpreta ou discute: age. Já os gregos, reunidos como iguais, discutem os sentidos da palavra oracular.
Consideram perspectivas contraditórias até que decidem pela melhor interpretação. Os gregos estabelecem, com as predições, uma troca verbal.
A palavra está na democracia, está na filosofia. Costuma-se mesmo dizer que a Atenas clássica inventou ambas -o que só é verdade se complementarmos dizendo que não ao mesmo tempo nem na mesma relação.
Pois o apogeu da filosofia correspondeu ao trauma da condenação à morte de Sócrates e, posteriormente, ao domínio macedônio. É justamente nesses períodos de esquecimento ou desaparecimento do pensamento do político, quando o indivíduo se vê privado do direito de escolher e deliberar, que a filosofia conserva intacta a faculdade de julgar.
Sócrates ensinava que as verdadeiras questões não se esgotam nas respostas. A filosofia constitui-se considerando as coisas em estado de questão, em vez de tomar uma conclusão definitiva.
Buscava definições -da Beleza, do Bem e da Justiça- sempre prometidas e sempre preteridas. Sua filosofia não dá crédito a preceitos religiosos que se contentam com explicações mágicas para tudo que excede o entendimento comum; tampouco aos modelos científicos que pretendem ultrapassá-las.
Nele vê-se que a resposta seria a traição da questão. Sócrates não ensinava a observar melhor um objeto, uma ação, um pensamento, mas a olhar em outra direção.
Levado à morte por um tribunal de Atenas, aceita até o fim suas leis, mesmo se a acusação é falsa e o tribunal ilegítimo.
Submete-se às leis, mas por suas próprias razões, não pelas de Estado. Assim procedendo se dá a conhecer à cidade e faz com que a cidade se conheça a si mesma: aquela que, silenciando o filósofo, preparava sua própria dissolução.
A pseudociência dos números e cálculos de mercado se auto-apresenta de forma a não permitir o questionamento de premissas e resultados. Aparecem dotados de valor intrínseco e de vida própria.
Aqui se encontra a essência do fetichismo. A ilusão fetichista modela a organização imaginária da sociedade. As trocas econômicas vivem da mesma devoção que o fiel atribui à existência de anjos e deuses. O Estado do bem-estar social dissipa-se. Entrando em colapso, passa a ser tratado como anacrônico, como filantropia irresponsável.
Homens, indivíduos, cidadãos são colocados entre parênteses por tempo indeterminado, mobilizados apenas nas estatísticas como objetos de cálculo ou sujeitos falidos de seu próprio destino.
Nas economias globalizadoras e nas globalizadas a política tem por função produzir, alternadamente, emprego e desemprego conforme as fatalidades do mercado. Desconhece-se a operação que milagrosamente converterá a miséria em crescimento sustentável. Tudo se passa como se a causa da pobreza fosse a falta de bens ou dividendos.
Retornam, portanto, a questão malthusiana e a darwinista: a população cresce mais rapidamente que os recursos econômicos. Tão somente uma severa competição é capaz de eliminar os "inaptos sociais" a igual título do reino animal e vegetal:
"É curioso ver", anotou Marx, "como Darwin reencontra entre os animais e vegetais a sociedade inglesa com a divisão do trabalho, a concorrência, a abertura de novos mercados, as invenções e a luta pela vida de Malthus. É o bellum omnium contra omnes (a guerra de todos contra todos) de Hobbes, que faz pensar na fenomenologia de Hegel, onde a sociedade burguesa aparece sob a denominação de reino animal do espírito, enquanto em Darwin é o reino animal que aparece como sociedade burguesa".
A aplicação do hobbismo e do malthusianismo ao domínio humano transporta a constância, a regularidade, a previsibilidade das leis da natureza ao mundo social. É para aqueles exauridos desse ideário que a filosofia pode constituir-se como forma de resistência.
Saber sem objetivo, a filosofia teve duplo nascimento: o que se dá na solidão reflexiva e o da Ágora, discursivo. Nesse sentido, é Sócrates quem realiza a passagem do pensar ao julgar, pelo efeito liberador da crítica, associando a persuasão à conformidade consigo.
Convencimento e razão são constitutivos da palavra.
Se o pensar filosófico é sem resultado imediato -utilitário ou pragmático- ele o é por sua especificidade. Pois é preciso amar as obras de pensamento para compreender, por exemplo, as relações dadas entre a filosofia do élan vital bergsoniano e a pintura impressionista.
E séculos não foram suficientes para decifrar a serenidade de Sócrates no momento de sua morte. E ainda: toda época para a qual o próprio passado se torna problemático, como a nossa, deve-se confrontar com o fenômeno da linguagem.
O filósofo não vive nas "nuvens"; não é um frio contemplador dos sofrimentos de seu tempo. O filósofo é aquele que faz "experiências de pensamento" mesmo em épocas de crise e de penúria.

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