São Paulo, quarta-feira, 13 de agosto de 1997
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Além do pragmatismo

ANTONIO BARROS DE CASTRO

Gustavo Franco apresentou-se ao Senado como um pragmático. Na mesma postura, viria a referir-se ("O Estado de S. Paulo", 10/8/97) à concessão de benefícios fiscais para atrair investimentos como "natural". Nessa ocasião, advertido de que as isenções e renúncias podiam privilegiar minorias, em detrimento do conjunto da sociedade, acrescentou que "é da natureza da atividade de governo de vez em quando tomar decisão baseada nos benefícios que traz para a coletividade".
Para muitos, fica colocada uma questão: "Será uma evolução ideológica ou uma manifestação de oportunismo...?". As palavras são do próprio Gustavo Franco, referindo-se à aceitação, por parte de Tony Blair e do professor Mangabeira Unger, de propostas tradicionalmente associadas ao liberalismo. (Cf. "O que é isso, companheiro?", "Jornal do Brasil", 18/5/97).
O tempo se encarregará de responder à indagação de Gustavo Franco -aplicada, no caso, a ele mesmo. Há, no entanto, outras questões, sobre as quais cabe desde agora refletir.
Não é "da natureza do governo" interferir nas decisões privadas, especialmente no tocante à assignação de recursos. Assim, também, não é da natureza do governo induzir o setor privado a tomar decisões que privilegiem, por exemplo, uma determinada região.
Os que defendem medidas dessa natureza o fazem por estar convencidos de que, relegadas aos sinais livremente produzidos e emitidos pelo mercado, as decisões das empresas e dos indivíduos geram resultados que distam muito do desejável e do possível. Isso é particularmente relevante no que toca à distribuição de renda (entre indivíduos e entre regiões), bem como, num outro plano, ao enfrentamento de dificuldades tecnológicas e à aceitação de riscos nos investimentos.
Colocada a questão nesses termos, percebe-se que o pragmatismo daqueles que se opõem ao império cego do mercado não consiste meramente em atuar "de vez em quando" e em função das circunstâncias. Ele tem por base experiências históricas contemporâneas, das quais se depreende que, sendo a economia como ela é (e não como apresentada nos livros e nos textos de economia) há que interferir. Ilustrando por meio de uma observação do próprio Gustavo Franco (na mesma entrevista): o comércio internacional contemporâneo é realizado, em grande medida, entre filiais e matrizes de multinacionais, sendo, portanto, um comércio "quase administrado".
Esse tipo de constatação se reproduz em diversos campos. Assim, e exemplificando mais uma vez, lembro-me do mal-estar causado nos primórdios do Real, quando advertíamos que o mero ingresso de capitais pode significar muito pouco, dada a sua possível volatilidade. Hoje, no entanto, o governo é o primeiro a destacar a "qualidade" dos capitais que estão financiando o balanço de pagamentos. Por oportunismo? Não. Quero crer que por aprendizado.
Num mundo caracterizado pela intensidade, pela velocidade das mudanças e pelas relações além-mercado, o governo não pode deixar de interferir nas decisões. Mas deve esforçar-se por não surpreender. E a forma de fazê-lo é o delineamento de grandes prioridades, inequivocamente definidas e escolhidas de forma socialmente aceita. Isso ajuda a coordenar decisões e reduz, em alguma medida, as incertezas -sem pagar o preço intolerável da omissão diante de problemas que, patentemente, não serão resolvidos meramente pelo mercado.
O que aqui está sendo dito é, em suma, que as mudanças ocorridas entre as posições características da primeira fase do Real e o "pragmatismo" atual estão se tornando gritantes. E, para que essas mudanças sejam entendidas (não sejam mal interpretadas), é preciso balizar minimamente o futuro -o que requer que se avance além do pragmatismo.
E quanto aos falcões do mercado, especializados na incriminação de tudo aquilo que transcende as decisões privadas, cobrarão sem dúvida o seu preço. Mas a sua audiência, ao que tudo indica, está encolhendo.

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