São Paulo, quarta-feira, 13 de agosto de 1997
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Cardoso, o sociólogo, volta na ficção

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

O economista Cristovam Buarque, governador do Distrito Federal pelo PT e ficcionista bissexto, retorna à literatura com um romance estrategicamente desequilibrado, em que o magro prefácio desperta mais atenção do que as 163 páginas restantes.
O livro, que se chama "A Ressurreição do General Sanchez", relata a história de um país imaginário, Sinandá, mergulhado numa feroz ditadura militar e onde vive um certo Jordan Cardoso, sociólogo da oposição.
Buarque publicou o romance pela primeira vez há 16 anos, sem causar muito alarde, quando "ainda não sonhava em ocupar um cargo público eletivo".
Depois, vieram outros 14 livros, a maioria de ensaios e somente três de ficção. O primogênito voltará à cena no próximo dia 19, em um relançamento da Geração Editorial.
Por se tornar "avarento com as palavras", o governador enxugou o texto, cortando "parágrafos e capítulos inteiros", mas manteve a trama original.
Novinho em folha é só o prefácio, a seara de apenas três páginas que o autor escolheu para atualizar as notícias de Sinandá.
E quais as últimas? A republiqueta se democratizou e elegeu como presidente o oposicionista Cardoso. Pelo menos, é o que contaram para o narrador -que, no entanto, duvida.
Afinal, raciocina, "os noticiários da CNN" mostram que Sinandá "continua a mesma: meninos perambulando nas ruas, desempregados sem rumo, as terras todas tão férteis ainda por distribuir, polícias assassinas, entrega de estatais e até do país inteiro, um país onde a moeda é mais importante que o estômago, coisa que nem o General ousou fazer".
O prefácio diz que o narrador soube das novidades pelas cartas de uma "dileta amiga", a "competente cafetina" Mimi Pacheco, cortesã oficial de Sinandá desde a época da ditadura.
Como acredita que "o tempo desarruma o juízo da gente" (e que a CNN não doura a realidade), o destinatário das correspondências rejeita as informações da prostituta e a toma por "esclerosada". Daí, o título do prefácio: "Pobre Mimi, enlouqueceu".
Newton
Cristovam Buarque sustenta que o romance "não manda recado para ninguém". "É só uma ficção, mera criação literária", afirmou à Folha por telefone.
Mas reconhece que emprestou do hoje presidente FHC o sobrenome de Jordan Cardoso.
"Quando escrevi a primeira versão da história, entre 1977 e 1980, Fernando Henrique era sinônimo de sociólogo. Todos da academia o admirávamos como professor. Então, usei o Cardoso para batizar o Jordan. Seria o mesmo que chamar de Newton um físico fictício."
O sociólogo aparece pouco nas duas versões de "A Ressurreição". É um coadjuvante que tem a tarefa de, vez ou outra, explicar o que se passa em Sinandá.
No início do livro, o narrador informa que o país -um conjunto de cinco ilhas, com bandeira azul e branca- está sob a égide totalitária do General Sanchez de Abreu.
Como acaba de completar 83 anos, o militar deseja encontrar um substituto à altura. Tenta de tudo, desde engravidar três mulheres até se submeter à clonagem, mas nada dá certo.
Um de seus assessores, o maquiavélico José Antonio do Espírito Santo Arruda, propõe, então, que o General morra para, depois, ressuscitar.
E assim se faz. Com o desaparecimento do ditador, Sinandá atravessa um período de caos e euforia. Trocam-se os nomes das ruas, os degredados voltam, instaura-se uma assembléia constituinte.
Quando vê a população abrir as cadeias e libertar os presos sem que ninguém ordene, Jordan Cardoso festeja: "A ordem já estava estabelecida dentro da cabeça do povo, só faltava ligar a tomada".
O assessor Arruda, porém, não esquece o General. Mexe os pauzinhos, causa um incêndio na assembléia constituinte e cria o clima para a ressurreição do déspota.
Com o retorno do militar, Cardoso amarga o exílio. O livro termina -e o narrador só saberá do sociólogo 20 anos depois, pelas cartas da cafetina Mimi.
Assim não dá
Em termos estilísticos, o romance denuncia, logo às primeiras linhas, a forte influência do realismo fantástico, gênero muito importante na América Latina dos anos 60 e 70, que consagrou nomes como o do colombiano Gabriel García Márquez.
A mítica Sinandá pode ser o Brasil, "mas também a Argentina ou a República Dominicana", diz Buarque.
O editor Ênio Silveira, da Civilização Brasileira, responsável pela publicação do livro em 1981, sugeriu à época que o nome do país imaginário soava como a corruptela de "assim não dá".
Esquizofrenia
As duas versões do romance trazem a mesma epígrafe: "(Este) é um folhetim sem pretensões políticas e um panfleto sem pretensões literárias. Conforme o humor do leitor... e a época em que o leia".
O duplo sentido, portanto, marca "A Ressurreição" desde o início e acaba contaminando o próprio Buarque.
Ele é o narrador do livro (um pesquisador anônimo, que morou em Sinandá), mas é também um dos personagens da trama, o escritor Ramón Octávio Alencar, que combate a ditadura do General Sanchez.
No prefácio da nova versão, quando Mimi avisa que Jordan Cardoso virou presidente, fica-se sabendo que "o chato escritor Ramón Octávio" se tornou prefeito da capital -e que, como o sociólogo, nada fez para mudar o país.
Mea-culpa do governador? Parece que sim, embora ele também use o prefácio para se auto-elogiar, agora na pele do narrador sem nome: "Felizmente, posso dizer que minha velhice não me trouxe oportunismo", ao contrário do que ocorreu com Cardoso e Ramón Octávio.
"O romance possui mesmo um caráter esquizofrênico", atesta o autor. "Quando considero as enormes dificuldades que enfrento para administrar o Distrito Federal, convenço-me de que meu governo é bom. Mas tenho outra faceta, frustrada, que gostaria de andar mais depressa."

Livro: A Ressurreição do General Sanchez
Autor: Cristovam Buarque
Lançamento: Geração Editorial
Quanto: R$ 18 (182 págs.)

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