São Paulo, sexta-feira, 15 de agosto de 1997
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A análise, o julgamento e o índio pataxó

LUÍS NASSIF

Um dos pontos centrais no processo de amadurecimento nacional são os novos critérios de análise e julgamento por parte da opinião pública. Esse personagem meio indefinido e caprichoso, de nome opinião pública, há alguns anos é o mais importante agente político do país, e sua importância será cada vez maior.
Há pouco descobriu a democracia. Há menos tempo ainda, começou a burilar a tolerância. Ainda não conseguiu romper de todo com o maniqueísmo, mas já consegue elaborar avaliações um pouco mais sofisticadas sobre pessoas e situações. É um aprendizado permanente, como se fôssemos todos adolescentes de ginásio, estudando para alcançar o estágio superior, de provincianos para cosmopolitas -entendido aí não as frescuras de status, mas o aprofundamento na análise de fatos públicos.
O assassinato do índio pataxó é um episódio bastante significativo para testar esses novos valores, pela dose de violência que o cercou.
Não se tratou de um japonês indefeso e inocente (como na Escola Base), nem de meia dúzia de favelados (caso do bar Bodega), nem de uma médica indefesa contra o professor doutor (caso Cláudia Liz).
Um grupo de adolescentes perpetrou ato fatal, jogando álcool e ateando fogo ao corpo de um índio. Não era meramente um pobre, um negro, um moleque de rua: era um índio, o que reveste o episódio de um simbolismo político relevante.
Crimes e gradações
Quem pode ser contra a punição dos acusados? Trata-se de um crime evidente, e como tal deve ser punido. Mas qual a punição? É aí que se incorre no erro da falta de gradação de crimes e de penas.
O direito define claramente que há gradações nos crimes, que os sujeitam a penas diversas -que podem ir da advertência à pena de morte (em outros países). Essas gradações estão ligadas não apenas aos efeitos do crime mas, principalmente, à motivação.
Absolveu-se o filho de um ex-ministro da acusação de omissão de socorro sob a alegação de que a vítima já estava morta -e, portanto, não havia por que ser socorrida. Se ele não tivesse matado a vítima, estaria condenado. Foi absolvido, porque matou.
Da mesma maneira, Brasília testemunhou uma gang massacrar um menino. Foi um trabalho homicida, deliberado. Deram as primeiras porradas, viram o resultado, prosseguiram, quebrando um a um os ossos da vítima. São assassinos completos que, como tal, mereceram condenação rigorosa da juíza Sandra de Santis de Mello. Agora, chega-se ao caso do índio pataxó, que passa a ser julgado pela mesma juíza.
Um grupo de rapazes prepara uma "brincadeira" de atear fogo às vestes de um mendigo para vê-lo correr assustado, e, de repente, provoca uma tragédia? Ou são assassinos completos que avaliaram, antecipadamente, todos os desdobramentos de seu ato?
Pouco importa, o índio morreu queimado, dirão os idiotas da objetividade. A intenção importa, sim. Porque, dependendo da intenção, no lugar daqueles jovens poderia estar o filho de qualquer um de nós, planejando um ato inconsequente -mas não necessariamente criminoso. Na adolescência, muitos de nós perpetramos trotes grosseiros, que poderiam ter terminado em tragédia. E o fizemos por não avaliar adequadamente suas consequências. Trata-se de questão crucial para avaliar o caráter dos acusados e suas intenções.
No entanto, desde o início, esse debate foi quase completamente sufocado na imprensa. Como sempre, tinha-se a vítima e, na outra ponta, havia a necessidade de bandidos completos, preto no branco, sem nenhuma nuance de humanidade.
Para dar mais brilho às manchetes, os rapazes viraram "elite" -dois moleques que trabalhavam em uma lanchonete para sustentar os estudos e o filho de um juiz de primeira instância. Elite...
Justiça cega
A partir da balbúrdia criada na mídia, é impossível avaliar com clareza se eram assassinos ou moleques inconsequentes. A avaliação serena só será possível à luz dos autos. E, pelos autos, a juíza que condenou severamente a "gang do jiu-jítsu" concluiu que os meninos devem ser julgados pelo crime que cometeram. Mas não havia elementos para assegurar que eles tiveram a intenção de cometer o crime.
Uma decisão corajosa, de uma mulher corajosa, que investe contra esse malfadado "clamor das ruas" -nada mais do que reações públicas estimuladas por noticiários tendenciosos.

E-mail: lnassif@uol.com.br

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