São Paulo, sexta-feira, 15 de agosto de 1997
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Vende-se um hímen idôneo por R$ 350

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Em Minas, uma virgem ofereceu-se por R$ 350 -preço até exagerado, pois em Minas e em outras paragens há virgens que se dão de graça, por amor à arte. Li o anúncio e não fiquei pasmo -como diria Nelson Rodrigues- nem perplexo -como diriam os editorialistas.
Encarei a proposta com naturalidade e, embora sem interesse pessoal na oferta, continuei mais preocupado com os meus problemas do que com a venda de um hímen das Alterosas.
Afinal, há discreto comércio de rins, fígado, olhos, pâncreas, piloro (não tenho certeza se existem piloros no mercado, é possível que cheguemos lá). Nada de admirar que uma donzela mineira ofereça sua intacta e idônea membrana a potenciais consumidores de um artigo que tradicionalmente tem estoques regularizados.
Falei acima em idônea. Foi assim que a moça se caracterizou, garantindo que sua virgindade não era uma ficção ou uma hipótese de trabalho, mas um dado concreto, mensurável. Para dizer tudo isso, ela (ou o corretor de seu anúncio) escolheu a palavra "idônea", que bem cabe nesta época em que nos habituamos a pessoas e coisas sem idoneidade.
Trata-se pois, de uma virgem idônea, de um hímen idôneo -o que leva à suposição de que existam virgens e himens não idôneos. Feitas as contas, o que será uma virgem ou um hímen sem idoneidade?
Já foi tempo em que fazia sucesso a "demi-vierge", cujo hímen, embora intacto, não era aceito como idôneo. Podia ser um hímen complacente, mas idôneo jamais!
É contra essa hipótese que a moça de Minas se previne, garantindo aos interessados que se trata de um hímen que, além de intacto, é idôneo.
Apresentado o produto, analisemos o preço. A moça não fez qualquer tipo de pesquisa mercadológica. Nem consultou o Banco Central, o Ministério da Fazenda ou a Receita Federal. Ela chegou a um preço (R$ 350) por conta e necessidades próprias.
Operou com coordenadas que nunca passaram pela cabeça de nossos técnicos em abastecimento e preços: precisava de R$ 350, logo, o produto que ela tencionava vender tinha de ter esse preço.
Adam Smith, Marx, Keynes, Roberto Campos, Pedro Malan, Gustavo Franco -qualquer economista que se preze teria objeções a esse tipo de formação de preços.
O valor do produto é formado pelos custos da matéria-prima, da mão-de-obra, dos transportes e embalagens, dos impostos e da taxa de lucro que compense o investimento global.
A moça de Minas esnobou essa cadeia de fatores e se fixou naquilo que os economistas chamam de "cifra final".
O preço de seu hímen teria de ser tanto porque era de tanto que ela precisava. Tampouco fez pesquisa de mercado para saber qual a cotação do produto na praça. Evidente que se trata de artigo não tabelado, isento de taxas e impostos. E -o que é mais importante- ainda não faz parte da cesta básica -o que garante, para a tranquilidade da moça e da nação, que seu hímen não terá qualquer influência no cálculo da inflação do mês em curso.
Resta saber, agora, quais os clientes-alvo de tão idôneo hímen. Em apressada análise de marketing, podemos destacar do universo potencial de consumidores de hímen as crianças de 10 anos e os idosos de mais de 90 -admitidas as exceções, tanto numa como noutra ponta da corda etária.
Descartam-se também as mulheres (53% da população), os gays mais radicais, as Testemunhas de Jeová e de outras seitas menos liberais que não fazem o gênero. Sobra pouca gente.
Principalmente se atentarmos ao preço: por R$ 350, em vez de uma virgem, dispõe-se de 50 virgens em certas regiões do Brasil, onde meninas de 11 a 15 anos têm de andar depressa para não perder o freguês abarrotado pela oferta, que é abundante.
Pelo mesmo preço pode-se comprar um videocassete de quatro cabeças, igualmente idôneo. Ou -de acordo com o gosto do freguês- 1.400 mariolas, aquelas bananadas embrulhadas em celofane que ainda são vendidas pelos camelôs de nossas calçadas.
As melhores são feitas em Campos (RJ).
Há gosto para tudo -diria Machado de Assis. Inclusive para cobrar dos jornais mais detalhes sobre a transação: a moça aceita cheque pré-datado? Facilita em duas ou três suaves prestações mensais? Aceita cartão de crédito?
Enfim, falando em nome dos interessados não no hímen da moça, mas na integridade da informação, exijo que esses dados sejam honestamente apurados e depois serenamente analisados pelos formadores de opinião.
Que se ouçam as classes dirigentes, ouça-se o clero, as lideranças do Congresso, o pessoal do MST, do Comunidade Solidária, meia dúzia de ONGs e o Caetano Veloso.
E que o governo, sem mais tardança, congele o preço do produto antes que os açambarcadores, os tubarões da economia popular ganhem novo e surpreendente pretexto para a ganância, a vil satisfação de seus apetites.

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