São Paulo, sexta-feira, 15 de agosto de 1997
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Condenação sem julgamento

TALES CASTELO BRANCO

Sem ter lido os autos do processo criminal, criticam a decisão da juíza, como se ela tivesse sido fruto da leviandade, do elitismo ou de algum outro interesse subalterno.
A impressão que se tem é a de que, com a mesma facilidade com que ferreteiam a honorabilidade das mães dos juízes de futebol -por quem sempre tive muito respeito-, causticam a sentença que não leram nem muito menos compararam com os elementos da prova contida no processo.
Querem a Justiça punitiva, exemplar, implacável. Querem uma decisão -pouco importa se justa ou injusta, se certa ou errada, se boa ou má-, desde que retumbe como as iras do Olimpo, estremecendo os céus e a terra. Aterrorizando a todos, como se o medo da Justiça e dos juízes inibisse a criminalidade, servisse de bom exemplo e fosse benéfico à sociedade.
Pergunto-me, estarrecido e perplexo, se essa discussão estapafúrdia sobre um processo que nem conhecem é justa. Indago-me se é ética. Interrogo-me se é correto julgar nas praças públicas e nas esquinas pessoas acusadas. E fico atônito quando vejo homens de caráter limpo, de biografia sem jaça, arregaçar as mangas como faiscadores de pedras preciosas, garimpadas no lodaçal incerto das pocilgas.
Tenho certeza de que não os anima a má-fé. Porém quem ousaria afirmar que não desservem os valores que pretendem defender, exatamente a Justiça, cuja credibilidade repousa na imparcialidade, nas regras do devido processo legal e no princípio da livre convicção do juiz?
Não há outra forma de fortalecer a justiça e o Poder Judiciário senão respeitarmos as suas decisões, quando elas resultam do livre convencimento do julgador.
Não me atrevi nem me atrevo a escrever uma palavra atacando ou defendendo esses rapazes que praticaram um ato realmente repugnante e que horroriza a consciência de qualquer homem medianamente civilizado.
Mas daí a criticar a decisão judicial, exarada num processo que não conheço, há uma longa caminhada. E não posso me arrogar o direito de fazê-lo, sob pena de ser injusto.
Houvesse a juíza sido subordinada, houvesse passado por cima das regras processuais da suspeição, houvesse desconfiança de que sua sentença tivesse sido resultado do tráfico de influência, eu estaria nas praças públicas e nas ruas -como estive desde a mocidade-, acicatando os vendilhões do templo que converteram a casa da Justiça numa vendola.
Porém nada disso ocorreu. Ao contrário: no silêncio de intermináveis noites, essa juíza deve ter pensado e repensado na causa. Terá avançado em fluxos de indignação e refluído, inspirada pela santidade da toga, à meditação serena, à difícil avaliação do elemento subjetivo da conduta desatinada e cruel desses moços. Até extrair da sua criteriosa avaliação a decisão que a sua consciência ditou como justa e necessária.
A ser justiceira -para relembrar o padre Antônio Vieira- terá preferido ser justa. Teria adicionado num dos pratos da balança da Justiça, simbolizada pela deusa Têmis, algumas gramas de piedade, tão própria da maravilhosa coragem das mulheres? Terá se lembrado da advertência severa e sábia de que o homem, quando julga outro homem, está usurpando a função divina?
Não sei. Não conheço a juíza nem tenho procuração para defendê-la. A longa e penosa vida de advogado criminal é que me desperta para essa empreitada, pouco me importando se a causa é impopular.
Seja como for, não tenho a veleidade de tomar nenhum partido, mesmo porque não estamos julgando um juiz de futebol que atuou em campo aberto, diante dos nossos olhos e, involuntariamente, prejudicou o nosso time.
A questão é mais séria: o mercado dos palpites emocionais não pode querer desestabilizar o duplo grau de jurisdição, que é marca registrada de todo regime democrático.

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