São Paulo, sábado, 16 de agosto de 1997
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Fantasmas: Zuzu Angel e a biblioteca

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

O senador José Serra fez soar na semana passada alguns acordes da velha eloquência parlamentar. Na comissão que sabatinava Gustavo Franco para a presidência do Banco Central, instado a manifestar-se por um de seus pares que acabara de criticar o candidato, o senador paulista respondeu: "Na vida pública, aprendemos que se pode ouvir tanto as palavras como o silêncio. Peço a vossa excelência que ouça o meu silêncio assim como ouvi as suas palavras".
Esta é uma elegância que os humores enfezados dos dias que correm fizeram desaparecer da cena política. Pronunciar-se por meio do silêncio ou ouvir o silêncio são formas superiores de discordar, de demarcar-se de pessoa ou posição. Com o respeito que a coisa pública merece.
Quase simultaneamente, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos (que funciona junto à Secretaria de Direitos Humanos) decidiu por 5 a 2 que a estilista Zuzu Angel não foi vítima de um atentado dos órgãos de segurança na madrugada de 14 de Abril de 1976, no Rio de Janeiro. Morreu, portanto, como então concluíram as autoridades policiais -vítima de um acidente de trânsito.
Tempos de censura e autocensura (mais esta do que aquela), a imprensa não fez a investigação que o caso requeria. "Veja" conseguiu publicar apenas o título da matéria ("Memória - Zuzu Angel, 1921-1976"), o resto foi suprimido. O "Jornal do Brasil" inseriu na páginas dos avisos fúnebres um convite dos amigos do filho, Stuart (assassinado barbaramente na base aérea do Galeão cinco anos antes), para a missa de sétimo dia da mãe.
À época, trabalhava na sucursal carioca desta Folha, onde, entre outros, redigia o "Jornal dos Jornais". Registrei a morte de Zuzu na edição do dia 25 de abril, no primeiro tópico, sob o título "Na área da violência e da coragem". Hoje, isto soa distante e estranho, como se não fosse coisa nossa -"Nos dias que correm, publicar um anúncio fúnebre pago é ato de insólita grandeza".
Nenhum jornal publicou a nota assinada pela própria Zuzu, entregue em todas as redações logo depois da sua morte e datada do ano anterior (23 de abril de 1975), em que dizia: "Há dias, recebi o documento descrevendo com pormenores as torturas e o assassinato de que foi vítima meu filho Stuart Angel Gomes pelo governo militar brasileiro. Este documento está fora do país, em mãos de um dos parentes americanos do meu filho mártir. Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta por acidente, assalto ou outro qualquer meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho. Zuleika Angel Gomes."
No mesmo tópico, uma nota do Sindicato de Jornalistas de São Paulo (então presidido por Audálio Dantas), em que se noticiava a ação interposta por Clarice Herzog contra a União pelo assassinato do marido. Comentei-a assim: "Demora, a busca será difícil e tormentosa, mas um dia aparecerá toda a verdade sobre a morte de Herzog."
Ano passado, 21 anos depois, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos concluiu que Vladimir Herzog foi morto e não se enforcou nas dependências do DOI-Codi de São Paulo. O caso de Stuart Angel também foi examinado pela Comissão -reconheceram seu assassinato por agentes do Estado nas instalações do Galeão. O caso da mãe, que advertiu seus amigos para os perigos que corria, foi arquivado.
Liberta dos constrangimentos da censura, a imprensa desta vez foi mais generosa em recuperar a memória dos anos de chumbo, noticiando a decisão da Comissão sobre a estilista Zuzu Angel. Mas o assassinato de outro estilista, Gianni Versace, mereceu da mídia brasileira cem vezes mais destaque, emoção, espaço e tempo. Questão de gosto. Ou de mau gosto, pois uma nação que se esquiva do seu senso trágico por meio da trivialidade está fadada a meter-se em toda a sorte de desatinos.
É preciso registrar que o governo FHC, ao contrário dos predecessores civis (Sarney e Itamar), tem sido exemplar nesta inglória tarefa de exumar violações e violências cometidas durante o regime militar. E a figura de José Gregori, antes no ministério da Justiça e, agora, na Secretaria de Direitos Humanos, é garantia de uma continuidade.
O resto diz-se em silêncio, como propõe o senador Serra.
Perplexidade igual nos assalta diante de um caso, felizmente sem mortes ou violências, quase pitoresco pelo conjunto de mentiras esfarrapadas, não fossem os fantasmas que evoca. Tem a ver com um dos mais longos processos de perseguição e extermínio da história e ao qual não ficamos imunes: a Inquisição.
Vale a pena recordá-lo no momento em que se anuncia a ordem do papa João Paulo 2º para iniciar o processo de beatificação de Girolamo Savonarola, frade dominicano que mandou e desmandou em Florença e acabou torturado, enforcado e depois queimado por decisão do Santo Ofício há cerca de cinco séculos (1498).
O caso ocorreu na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, um dos pilares da nossa cultura, instituição que remonta à chegada de D. João 6º, que, entre outras salutares providências, trouxe a preciosa coleção de livros do padre-acadêmico-bibliófilo Diogo Barbosa Machado, base do seu acervo.
A fundação mantenedora da Biblioteca rompeu no último momento um compromisso acordado por escrito (e pago) seis meses antes para uma exposição sobre os 500 anos da expulsão dos judeus de Portugal. As desculpas para o inusitado distrato foram copiosas e, justamente por isso, inconfiáveis: os reparos nas instalações não ficaram prontos, a mostra não era relevante porque já fora exibida em São Paulo e, finalmente, que poderia causar "impacto diplomático" nas relações com Portugal.
O caso foi noticiado pela Ilustrada (7 de agosto, pág. 8), a mostra foi remontada às pressas em outro local (o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), o governo português, por meio da sua embaixada de Brasília, prontamente desmentiu qualquer tipo de pressão para evitar o evento e tudo encaminha-se para cair na vala comum dos mal-entendidos, gafes e pequenas leviandades. Em meio às manifestações de alta estima e consideração etc. etc.
O que não impede um travo incômodo, porque se trata justamente da mais famosa biblioteca do país, símbolo da nossa devoção ao saber (ainda que tardia) dirigida pelo professor Eduardo Portela, intelectual de alto nível, que responde ao ministro da Cultura, o também professor Francisco Weffort, figura que aprendemos a respeitar pelas inabaláveis convicções democráticas. Entregaram o caso à burocracia e a misteriosos órgãos de denominação kafkiana, como um tal Conselho de Coordenação Executiva.
É preciso que se diga (antes que se aleguem razões de Estado) que o governo de Lisboa, por meio dos dois últimos presidentes (Mário Soares e Jorge Sampaio), vem reiterando a solidariedade com o povo judeu pelos sofrimentos infligidos pela coroa lusa desde 1496.
Em dezembro passado, em Portugal, por ocasião do aniversário do decreto de expulsão dos judeus, organizaram-se diversas solenidades. A principal, sessão evocativa com toda a pompa e circunstância na Assembléia da República, contou com a presença do presidente Jorge Sampaio, para revogar o odioso decreto promulgado por D. Manuel (o Venturoso) e votar uma resolução que saúda a reaproximação dos povos português e judeu. Discursaram representantes de todos os partidos -dos verdes aos socialistas, comunistas e centro-direitistas.
Não há, portanto, a mais remota chance de que a exposição (concebida para mostrar algumas obras raras da biblioteca) pudesse ferir as sensibilidades portuguesas. Mas feriu os princípios que regem o Estado brasileiro. Não sabemos como votou o tal Conselho nesta questão, apenas que está arquivada.
Arquivar não significa esquecer. Na casa onde se cultiva a memória e se faz história soltaram-se fantasmas. Convém catalogá-los -em silêncio.

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