São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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STJ define indenização para Mendes Júnior

FREDERICO VASCONCELOS; MARCIO AITH
DA REPORTAGEM LOCAL

Construtora pode receber R$ 4 bilhões da Chesf pelo atraso no pagamento das obras da usina de Itaparica

O empresário Murillo Mendes, um dos maiores empreiteiros brasileiros, terá um dia decisivo amanhã. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) poderá tirar do buraco a sua empresa, a Mendes Júnior Engenharia S.A. A construtora deve ao governo cerca de R$ 2 bilhões, em impostos e empréstimos não pagos, e passará a credora se o tribunal decidir que a Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) deve indenizá-la em R$ 4 bilhões.
A disputa judicial foi originada a partir de atrasos de pagamento durante a construção da usina de Itaparica, em Pernambuco, concluída em 1986.
"Estou lutando para receber porque eu estou inadimplente e, como cidadão normal, quero pagar minhas contas", diz Mendes.
Parceiro do governo federal em grandes projetos durante o regime militar e amigo pessoal do ex-presidente Sarney, Mendes diz que nunca recebeu ajuda do governo.
"A Mendes Júnior não está precisando e nunca precisou de ajuda. Nunca tive subsídio nem paguei ao Banco do Brasil juros mais baixos", diz o empresário.
A construção de Itaparica foi iniciada em 1981 e durante dois anos a Chesf atrasou parcelas que devia à Mendes Júnior. Mas pagou os juros e correção monetária, cumprindo integralmente o contrato.
Em 1988, alegando ter contraído dívidas no mercado para cumprir o cronograma da obra, a Mendes Júnior pleiteou a indenização, com base nos índices médios de juros dos empréstimos.
A Justiça já decidiu que a Mendes Júnior tem direito à indenização. O que está em jogo é a definição do valor. Em 1995, um juiz de Pernambuco fixou o montante de R$ 1,5 bilhão, com base numa perícia feita por um economista.
A Chesf recorreu ao Tribunal de Justiça de Pernambuco e conseguiu anular essa perícia. O tribunal julgou que a Mendes Júnior não não havia comprovado ter contraído empréstimos. E que a perícia deveria ter sido feita por um contador, e não por um economista.
Na sexta-feira passada, Mendes saiu de sua habitual discrição para conceder entrevista à Folha, no escritório da empresa, na avenida Paulista.
*
Folha - Por que o sr., que sempre preferiu atuar em "low profile", resolveu falar sobre a disputa judicial às vésperas do julgamento?
Murillo Mendes - Porque existe uma pressão da mídia, principalmente da mídia 'chapa branca', colocando posições falaciosas e inverídicas. Eu quero me ater aos fatos, de forma objetiva. Existe uma pressão enorme, da Chesf, tentando politizar um problema que não é político.
Folha - Como assim?
Mendes - Ela diz que (a indenização) vai prejudicar a privatização, que vai quebrar se tiver que nos pagar. São alegações subjetivas e até mentirosas. Ela está fazendo terrorismo. Colocam a Mendes Júnior como uma empresa que está pleiteando uma coisa absurda, como uma exploradora da coisa pública. Não é verdade. A Mendes Júnior é que tem sido explorada pela coisa pública. A Chesf plantou nos jornais que o nosso crédito nesse processo é de R$ 7,5 bilhões, de R$ 12 bilhões. Mas não é isso.
Folha - E de quanto é?
Mendes - Hoje são R$ 4 bilhões. A Chesf devia fazer um acordo, um acerto. Porque nós temos muitas dívidas com o patrão da Chesf, que é o governo, e nós sempre estivemos dispostos a compensar.
Folha - Como o sr. avalia hoje a situação da Mendes Júnior?
Mendes - Como sempre, é muito difícil.
Folha - As dívidas chegam a quanto?
Mendes - As de curto prazo dão para negociar. Temos conseguido uma posição simpática de nossos credores, de nossos fornecedores. No total (de curto e longo prazo), elas chegam a mais de R$ 2 bilhões.
Folha - Quem é o maior credor?
Mendes - O governo.
Folha - Se o sr. ganhar a indenização, como usará os recursos? A Mendes Júnior pagará as dívidas com o governo?
Mendes - Se o governo quiser negociar, é claro, eu tenho que pagar, seja de que forma for.
Folha - E as dívidas com impostos, são grandes?
Mendes - São grandes, porque as multas são violentas.
Folha - Tem dívidas com o INSS?
Mendes - Tem. Tudo a que temos direito...
Folha - O grupo já usou a expectativa de receber a indenização como garantia em alguma operação?
Mendes - Nós demos parte dela como garantia em dívidas, como a que temos com a Açominas. E em várias outras (dívidas), com empresas privadas.
Folha - A Chesf alega que o contrato que assinou com o sr. previa, num aditivo, que, em caso de atraso, os pagamentos seriam feitos com juros e correção. E que esse contrato foi cumprido. A Chesf cumpriu o que tinha assinado?
Mendes - O contrato realmente previa penalidade para atraso de pagamento. Mas não se imaginava que haveria um atraso de dois anos. Acabou virando um financiamento compulsório. Só um maluco assinaria um contrato em que tivesse que financiar uma obra durante mais de um ano, ou mesmo mais de um mês. Num país em que num certo período houve juros de 80% ao mês, só um maluco mesmo assinaria.
Folha - O sr. poderia ter interrompido a obra.
Mendes - Poderia. Mas seria complicado, porque se eu interrompesse a obra teria um prejuízo enorme, difícil de recuperar.
Folha - A construção da usina era necessária?
Mendes - Sim. Na época, estava previsto um racionamento no Nordeste. Então, a obra foi priorizada, houve a concorrência e fizemos a obra. Essa obra foi contemporânea de Tucuruí, que tinha um charme enorme, porque era na Amazônia. Havia o interesse geopolítico. Tucuruí custou três vezes mais.
Folha - A Mendes Júnior disputou concorrência? Houve licitação muito disputada?
Mendes - Houve sim. A concorrência foi concorridíssima. Concorrência aberta, para valer. Na época, as obras no Brasil eram de grande porte, financiadas pelo Banco Mundial, que exigia padrões de controle. Itaparica começou numa fase em que os padrões de pagamento já não eram tão rígidos. Naquela época, não se perguntava se você contribuía ou não para eleição. Era capacidade e preço baixo.
Folha - O Tribunal de Pernambuco, ao decidir contra o sr., levou em consideração que não havia provas de que a Mendes Júnior pegou dinheiro no mercado para poder concluir a obra. Houve alguma perícia dentro da contabilidade da empresa?
Mendes - Não. Não havia necessidade porque o acórdão (decisão de tribunal) que havia estabelecido nosso direito mandou que a indenização fosse calculada pelos 'juros de mercado'. Não mandou que se fizesse uma auditoria. Nos autos está dito que não importa se a empresa usou capital dela ou de terceiros.
Folha - Mas o sr. usou capital próprio ou pegou de terceiros?
Mendes - É claro que peguei. Eu não tinha (recursos). É muito fácil ver pelos balanços. Não precisa fazer perícia. Mesmo que fosse o meu capital, a sentença diz que é assim que deve ser (juros de mercado).
Folha -Uma coisa é a auditoria do balanço. Mas não seria necessário uma perícia interna, um exame da contabilidade da empresa?
Mendes - Para esse efeito da Justiça, não. Porque não foi solicitado. Não foi isso que foi decidido.
Folha - Mas não seria mais correto se o juiz tivesse dito: 'Vamos ver quanto ele realmente pegou no mercado, verificando os contratos de empréstimo'. E depois fazer um levantamento sobre quanto foi obtido, pelas taxas, e reembolsá-las?
Mendes - Talvez tivesse sido, mas esse não é mais o caso. Nós vivemos numa sociedade com uma Constituição e leis definidas. Quando entramos com a ação, pedimos uma coisa determinada, e a Chesf se defendeu. Aí o juiz deu a decisão, criando um fato consumado. Foi o juiz quem decidiu. Agora você diz que seria mais justo assim ou assado. Não é o caso.
Folha - A Chesf alega que se o sr. aplicasse no mercado financeiro o dinheiro que alega ter gasto para concluir a obra, obteria menos do que a Chesf pagou em multas no contrato.
Mendes - Está certo. Mas isso é falacioso. O fato é que eu não apliquei. E é fácil comprovar.
Folha - O fato é que a indenização fixada em primeira instância foi altamente favorável para sua empresa, e contrária aos interesses da Chesf.
Mendes - Mais ou menos. O juro médio que o perito calculou é muito mais baixo do que o que nós pagamos. E é normal, porque a empresa, fortemente endividada como estava na ocasião, não conseguia obter os juros mais baixos.
Folha - O sr. tem recebido pressões do governo?
Mendes - Eu quero ser objetivo. Eu sei que existe pressão. Não é a filosofia do presidente, do partido, mas existem alguns administradores que acham que esse negócio de Justiça e de leis são coisas muito chatas, que atrapalham. É o fundamento de toda a ditadura. Fala-se muito do liberalismo. O fundamento do liberalismo é o direito inalienável do cidadão contra qualquer tipo de poder dentro da sociedade, principalmente o poder público. A função da Justiça é cumprir a lei. A função dela não é ajudar a administração de governo.
Folha - E o governo diz que a função do governo não é a de ajudar as empresas em dificuldade...
Mendes - Nem eu estou pedindo ajuda. Eu jamais pedi ajuda. Estou pedindo para me pagarem o que me devem. Você nunca ouviu a Mendes Júnior dizer que precisava de ajuda, ou de recebê-la, como estamos vendo no caso da Encol. Às vezes amigos meus dizem: 'É uma sacanagem, você tem serviços prestados ao Brasil. O governo tem que te ajudar'. Eu não estou pedindo nada ao governo. Estou tendo dificuldades, mas não estou pedindo uma compensação que inventei. Fui à Justiça e foi a Justiça que arbitrou o que seria legítimo. Eu segui esse caminho. Eu não posso ficar sujeito ao bom humor de funcionários eventuais. O controlador da Chesf é o Estado, mas a Chesf tem, perante a lei, obrigações iguais às nossas.
Folha - A imagem do sr. é de um grande empresário, amigo de ex-presidentes da República...
Mendes - É outra mentira. Veja a falta de lógica. Outros grandes empresários que trabalhavam nesse ramo não têm problemas, não têm contencioso. Se eu tenho, é porque os meus amigos, no mínimo, foram amigos da onça... É uma bobagem que se vai criando.
Folha - Mas e o ex-presidente Sarney? Suas relações com ele não eram próximas?
Mendes - Ele foi uma pessoa com quem estabeleci relações de amizade. E em todos os negócios que fiz no Estado dele eu só levei ferro. Nunca tive nada. Gosto dele como pessoa. Caí na bobagem de trabalhar no Maranhão, o que foi um desastre. Você trabalhar para gente pobre é fria, principalmente se é amigo seu.
Folha - Para uma grande empresa, como a sua, é mais difícil trabalhar num processo de abertura ou foi mais fácil trabalhar durante o regime militar?
Mendes - A gente não pode classificar dessa maneira simples. A primeira fase de governo militar foi uma fase de modernização, no sentido global de seriedade, de não se fazer obras sem recursos. Foi muito proveitosa. Depois, a coisa foi se degradando e começou a penetração civil... A desorganização não é militar nem civil. A corrupção sempre vem com o poder discricionário. É inevitável que o poder corrompa. Todas as ditaduras, no começo, são reformadoras, moralizadoras.
Folha - O sr. tem interlocutor no governo? Qual é a sua relação com o presidente?
Mendes - Ele diz que gosta muito de mim, que é meu amigo.
Folha - E com o ministro da Fazenda?
Mendes - Oito meses depois da última vez que estive com ele, escrevi uma carta. Disse que continuavam sem solução problemas que estão me causando prejuízos muito grandes, provocados por pessoas subordinados ao seu comando.
Folha - O sr. tem conhecimento de alguma outra construtora que tenha tomado a decisão de processar o governo por atrasos? Uma decisão favorável à Mendes Júnior não criaria uma jurisprudência perigosa? Temos de levar em consideração que a Usina de Itaparica custou US$ 1,5 bilhão mas a indenização que o juiz fixou para a empresa daria para construir pelo menos outras duas usinas.
Mendes - São US$ 4 bilhões agora. Mas eram US$ 100 milhões na época que a obra terminou. Se ela (a Chesf) tivesse pago isso na época, não teria custado um terço do preço de Tucuruí. Outra falácia: quanto você acha que a Chesf já faturou nessa obra (Itaparica)? Sabe quanto ela já faturou, de lá para cá? Quanto você imagina? Foram US$ 13 bilhões.
Folha - Mas é faturamento, não é lucro. Não é excedente.
Mendes - É lucro, porque a usina hidrelétrica só tem custo de investimento.
Folha - Sim, mas mesmo assim não haveria um risco de se criar um precedente perigoso? Afinal de contas, como no caso do sr. há milhares de outros no país...
Mendes - Eu estou tratando de um caso específico. Eu não estou aqui para discutir a fama de empreiteiro, eu estou aqui para dizer que eu sou responsável pelas minhas coisas. Não acredito que exista outro caso de empreiteira nessas condições. Conheço apenas um caso, na Eletronorte, que acabou não chegando aos tribunais.
Folha - Mas o sr. não acha temerário o governo vir a ser obrigado a desembolsar R$ 4 bilhões para uma só empresa?
Mendes - O problema é o seguinte: as empresas cujo sócio controlador é o Estado estão sujeitas à lei ou não? Nós não podemos tratar as coisas sem os fatos objetivos. Veja a disparidade: o Banerj, para ser vendido, teve que conseguir um financiamento, gastar US$ 3 bilhões para pagar os direitos que estavam lá. E se vendeu o banco por US$ 200 milhões. No Credireal, gastou-se mais de US$ 1 bilhão para vender o banco por cento e pouco milhões. Porque eles viram que existiam direitos que são pacíficos. O setor siderúrgico foi vendido depois que se gastou babas de dinheiro. A venda líquida foi toda negativa. Não está em pauta isso. Não se pode obter uma indenização se você vai estabelecer ilhas de imunidade às obrigações contratuais. Por que que é justo gastar US$ 90 bilhões com o Banespa? Então, você cria o arbítrio.
Folha - Outro aspecto incomum é quanto os advogados receberão caso a Mendes Júnior ganhe a causa (20% do valor da indenização). Não é muito?
Mendes - Mas não fui eu, foi o juiz quem arbitrou. Pode ser reformado, mas não estamos ganhando com isso, não.
Folha - O sr. falou do desrespeito que a Chesf teve pelo Judiciário. Mas o Tribunal de Justiça de Pernambuco, que decidiu contra o sr. também é Justiça. E se o sr. perder no STJ?.
Mendes - Eu tenho que andar dentro da lei. Se eu perder, não vou ofender, vou entrar no Supremo, onde, aliás, já entrei. Se eu perder no final, muito bem, azar. Não tem mais recurso. A Chesf vai ter mais três ou quatro anos de catimba, e depois vai falar que dá para fazer dez, vinte (usinas).
Folha - O sr. também mantém uma disputa judicial com o Banco do Brasil por causa de perdas da Mendes Júnior no Iraque. Como o sr. se sente convivendo com esses processos judiciais? O sr. hoje briga com o governo, que foi um parceiro no início de sua carreira. Como o sr. vê isso?
Mendes - Vejo isso com muita naturalidade. Eu sou um observador da história do Brasil. Já tenho 71 anos de idade. Minha proposta inicial, ao criar a empresa, foi escolher o ramo da engenharia hidráulica que só era feita no Brasil por empresas estrangeiras. Recrutei no mercado mundial pessoas de nível, canadenses, americanos. Formei brasileiros, formei uma escola. A Mendes foi a grande formadora. Adquiri respeitabilidade no exterior. Eu não quero nada mais além de que me paguem o que me devem. Eu não quero ajuda. Eu só quero a avaliação da sociedade e a oportunidade de apresentar os fatos para serem refutados.

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