São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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A gangorra das moedas e as contradições da Nova Ordem

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Flutuações na paridade cambial das principais moedas conversíveis vêm acontecendo periodicamente desde a ruptura do padrão monetário internacional em 1971-73. As mais drásticas ocorreram na valorização de 1979/80 e na desvalorização 1985/86, promovidas pela chamada "diplomacia do dólar" sob comando do Fed.
Desta vez, porém, a valorização da moeda americana parece ter sido o resultado indesejado das recentes crises financeiras e cambiais na Ásia, e das "desvalorizações competitivas" que os mercados financeiros globalizados propagaram em ondas até atingir o continente europeu.
As moedas do Sudeste Asiático, que estavam predominantemente alinhadas ao dólar (a moeda desvalorizada), sofreram fortes ataques especulativos e moveram-se além da desvalorização do iene. Na Europa (que enfrentava dificuldades monetárias e fiscais crescentes), as "mésaventures" da moeda única, sob o comando do marco alemão, encontram-se novamente em pleno curso, com a recente desvalorização do marco e do franco, embora a libra se tenha mantido alinhada com o dólar.
A City londrina desempenhará provavelmente um papel desestabilizador para a construção do euro, continuando a ser o "local" privilegiado da especulação e da arbitragem financeira das demais moedas européias em relação ao dólar.
É preciso ter claro, no entanto, que os próximos desenvolvimentos financeiros e políticos na Europa e na Ásia, apesar de poderem desempenhar um papel importante na transformação das assimetrias da "nova ordem" e na instabilidade financeira global, nem por isso põem em questão os dois pilares de sustentação da hegemonia americana no mundo: a moeda e as armas.
O euro, mesmo que venha a ser implantado, dificilmente o será como moeda regional única. Da mesma forma, a expansão do iene como moeda financeira na Ásia não representa um desafio à supremacia financeira internacional da moeda norte-americana. A gangorra das principais moedas, se der lugar a uma nova instabilidade financeira, pode obrigar o Fed a promover, mais uma vez, um forte movimento de enquadramento dos principais bancos centrais, sob uma nova diplomacia do dólar. No entanto, o governo americano dificilmente abrirá mão de seu privilégio de devedor líquido internacional para restaurar uma "nova ordem monetária" internacional mais equilibrada.
Obviamente, tampouco a pax americana estará em questão, de vez que a diplomacia das armas continua, por ora ao menos, sob o controle da potência dominante. O recente avanço social-democrata na Europa não traz quaisquer indícios de uma contestação política ou ideológica mais significativa à hegemonia global norte-americana. Na Ásia, até agora, nem mesmo a China tem se constituído em contestatária da "Nova Ordem", continuando com a sua estratégia de um pé dentro e outro fora do sistema.
Dadas as situações de extrema assimetria que se consolidaram, tanto no terreno militar como no financeiro, entre as grandes potências da OECD, o grau de desestruturação sistêmica passível de ser originado por algum descontrole no uso do potencial bélico ou do potencial financeiro, até aqui sob controle global de um único ator dominante, tornou-se elevado o bastante para desavisar qualquer contestação ao papel de "hegemon" do sistema capitalista desempenhado pelos EUA. O cálculo estratégico no âmbito dessas áreas sensíveis pode, entretanto, sofrer alterações em seu equacionamento básico, se o jogo das rivalidades internacionais e intra-regionais fragilizar algum dos "elos fortes do sistema".
Quando os gestores da ordem hegemônica buscam um avanço imperial de suas prerrogativas, procurando impingir uma primazia decisória absoluta em todas as áreas da vida internacional (econômica, política e cultural), tal linha de ação pode implicar que se concretizem perdas por subordinação para os atores mais expostos, acima e além do custo implícito na hierarquização hegemônica. Tais perdas, por seu turno, podem tornar mais atraentes políticas de resistência e atrito localizadas diante dos desígnios "hegemon". No médio e longo prazos os atores mais dinâmicos podem afiançar proposições de ordens regionais de poder político e econômico, estimulados negativamente pela percepção da falta de espaço para o desenvolvimento de suas potencialidades ou positivamente pela identificação de oportunidades para composição de interesses com outros atores não hegemônicos.
Esses atritos e "contestação" são estimulados pela atuação internacional dos EUA, que, depois da derrubada da URSS, tem se caracterizado por um endurecimento de sua estratégia de dominação. Em nome das liberdades econômicas, comercial, dos capitais financeiros e do investimento direto, os representantes americanos vêm fazendo demonstrações ostensivas e arrogantes de poder contra seus principais parceiros comerciais na Ásia, como se testemunhou na reunião de Cingapura da OMC (novembro de 1996), e provocando arrufos de animosidade da parte de japoneses, coreanos, malaios e chineses -estes últimos extremamente agastados pela condução abertamente intimidativa das negociações para a renovação, de resto inevitável, do status de nação mais favorecida da China.
O espaço econômico asiático, talvez por sua dimensão, heterogeneidade e dinamismo, não tem se prestado recentemente a uma coordenação estabelecida de fora para dentro por um parceiro mais forte. As recentes crises do Japão e dos tigres asiáticos deram lugar, porém, a um tumulto financeiro considerável na região. O Japão, depois de sair da sua própria crise financeira desvalorizando o iene com ajuda do Fed, está agora tirando proveito da situação, assumindo uma posição de "arbitragem benigna" no Sudeste Asiático. Essa solidariedade regional pode estender-se pelo menos em termos econômicos, sempre que se mantiver um poder desarmado frente à Coréia e à China e, sobretudo, se conseguir assegurar uma menor dependência cambial e comercial em relação aos Estados Unidos.
Na Europa, nem a França nem a Alemanha vêem com bons olhos a nova estratégia militar da Otan implementada pelos EUA, nem a entrada a título gratuito da Rússia para a OCDE. A velha Europa, como sempre, não vai desistir de tentar combinar, ainda que assimetricamente, poder econômico e poder militar, reforçando o eixo Berlim-Paris com vistas a uma Europa continental unificada.
Infelizmente na América Latina não existe nenhum parceiro forte em condições de desempenhar o papel de "mediador benigno" diante dos Estados Unidos, cujas exigências não são de coordenação, mas de submissão a seus desígnios.
Não por acaso mestre Furtado, em recente entrevista ao "O Estado de S. Paulo", recomenda, na boa tradição dos socialistas utópicos, uma Nova Ordem Mundial mais cooperativa e igualitária. É óbvio que partilho desse "desejo" com meu mestre e com todas as pessoas animadas de "projeto" utópico. Mas, enquanto a utopia não chega, conviria fortemente aos interesses da nação brasileira uma política econômica defensiva diante das turbulências do mercado financeiro e sobretudo uma maior atenção ao andamento cambial das principais moedas internacionais, para não perder de vez qualquer possibilidade "competitiva" na Ásia e na Europa, e não expor ainda mais a nossa "frágil" moeda a um ataque especulativo.
Por outro lado conviria, tanto a nós quanto aos argentinos, resistir o melhor possível à tentação de trocar os aspectos já limitados de nossa soberania nacional e regional por um cargo figurativo no Conselho de Segurança da ONU, que se limite a servir de moldura à "Pax Americana".

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