São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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Celebração do linchamento

LUÍS NASSIF

Repito o que escrevi na coluna de sexta-feira: como fato público, o caso Galdino (o índio patoxó incendiado por jovens brasilienses) traz muito mais lições para o processo de formação da mídia do que todos os episódios anteriores, de execução sumária de inocentes.
Desta vez, não há inocentes. Há uma vítima e culpados claros, jovens que, com objetivo criminoso ou por desejo de se divertirem -em qualquer hipótese, movidos por intenção manifestadamente perversa-, provocaram a morte do índio.
Tinham intenção manifestadamente perversa e 1) merecem ser punidos por isso; 2) merecem ser punidos por isso; 3) merecem ser punidos por isso.
Repito três vezes essa afirmação porque uma das características dos debates primários que, em geral, se desenvolvem no âmbito desses episódios, é concluir que, quem não advoga a pena capital, automaticamente está defendendo a absolvição dos culpados.
Imaginem-se duas situações:
Situação A - os jovens saem de casa com o objetivo confesso de encontrar um índio na rua e assassiná-lo. Planejam com todos os detalhes e requintes de crueldade.
Situação B - os jovens saem de casa com o objetivo cruel de encontrar um mendigo na rua, colocar fogo em sua roupa, para vê-lo sair correndo, sabendo do risco da vítima sofrer queimaduras, mas sem avaliar que o fogo pudesse matá-lo.
São situações graves, porém distintas, ambas exigindo punições severas, mas de graus diferentes.
Quando a morte é planejada, vai-se a júri popular, e sujeita-se o culpado a penas severas. Quando a morte é decorrência de brincadeiras cruéis -mas sem a intenção de matar-, adota-se outro procedimento, que prevê penas severas, porém de menor intensidade.
Alguns leitores me escreveram sustentando que quem planeja brincadeira com fogo sabe que as consequências podem ser fatais. Sabe sim. Por isso mesmo, dentro da segunda hipótese -planejar uma diversão cruel sabendo que pode resultar em danos para a vítima-, os jovens merecem a pena mais grave que a lei preveja.
Como se vê, trata-se de episódio complexo, com muitas nuances, a exigir análise isenta e justa, para se aquilatar qual a motivação dos assassinos.
Para complicar mais a análise, na semana em que ocorreu o fato, a revista "Veja" trouxe perfil precioso dos rapazes. Nenhum tinha antecedentes violentos. Eram considerados rapazes normais e afetuosos (embora fechados e tímidos) por colegas e amigos.
Os pais estavam há anos-luz de distância do protótipo de pais classe média alta, ricos e arrogantes. Quase todos, de classe média baixa. Dois dos matadores trabalhavam em lanchonete, para sustentar os estudos. O pai mais ilustre do grupo é um juiz de direito de primeira instância, que fez mais pela causa indígena do que a maioria desses porta-vozes de direitos humanos que reservam sua indignação apenas para episódios passíveis de cobertura extensiva pela mídia.
Aí entra em cena o grande show da mídia. O que é notícia? Obviamente, a versão de um grupo de jovens neonazistas, filhos da "elite brasiliense", ricos e poderosos, com ódio ancestral pelos índios, que planejaram a morte de Galdino. Vira uma festa.
Redes poderosíssimas, com um tema na mão que vale ouro -cada ponto de audiência a mais representa milhões de dólares de faturamento-, conseguem passar para a opinião pública a versão de que os fortes e poderosos da história são os rapazes que trabalhavam na lanchonete, e seus pais sequer dinheiro tinham para custear-lhes os estudos.
Mas, graças aos mosqueteiros da mídia, que não se intimidaram com o poder, não se permitirá que os poderosos saiam mais uma vez impunes.
Permite-se essa grande celebração nacional, entre veículos conservadores e porta-vozes dos direitos humanos em torno da grande causa indígena. E, pelo-amor-de-Deus, não venha nenhum chato lembrar que o pai de um dos rapazes é um ícone da causa indígena, senão vai cortar o barato dos nobres ativistas.
Galdino, rapazes tresloucados, seus pais, todos não passam de personagens secundários, nesse grande show da mídia. É aí que entra a importância do julgamento desapaixonado.
E aí entra a admiração da coluna pela juíza Sandra de Santis Mello, que não se intimidou perante o verdadeiro poder -não os pais dos matadores, tão vítimas e indefesos quanto os pais de Galdino, mas essa grande e renovada celebração mítica do sacrifício dos ímpios, em busca de melhores índices de audiência.

Email: lnassif@uol.com.br

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