São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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Feitiçarias do capital

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A idéia de que a vida social se converteu em espetáculo se tornou tão produtiva nos estudos das últimas décadas que com frequência esquecemos um dos textos decisivos a expô-la: "A Sociedade do Espetáculo", de Guy Debord, que, às vésperas de Maio de 68, criticava uma vida que se move apenas em meio a simulacros.
Essa convicção define nosso autor. Ele pressupõe que exista uma vida autêntica que é inatingível na sociedade moderna, capitalista. Mas essa autenticidade não existiu antes e, talvez, jamais tenha existido. Por isso, ao contrário de outros franceses de sua época, "heideggerianos de esquerda", que valorizavam as sociedades não-européias e o pré-capitalismo, Debord deixa clara sua opção por uma história entendida como progresso. A vida autêntica está por se fazer. Não é um dado da natureza, nem algo que se perdeu. Tudo está por ser conquistado.
O que o leitor de hoje pode estranhar é o papel do marxismo nesse pensamento radical. Em vez de apenas mostrar como nossa sociedade substitui o contato com o "real" ou com "a vida" pela mediação incessante dos simulacros, o que poderia fazer descrevendo programas de televisão, Debord pensa o espetáculo a partir do fetichismo da mercadoria. Essa referência à célebre análise de Marx no "Capital" confere densidade teórica a seu trabalho -sem, aliás, torná-lo pesado para o leitor leigo.
A mercadoria tem destaque em Marx. Ela é o que há de mais banal. Nada é tão prosaico como a conversão de tudo, até dos valores estéticos e éticos, em mercadoria. E, ao mesmo tempo, ela se torna fetiche (palavra, sabe-se, que vem do português "feitiço"): tem algo de encantatório. Aqui está a mais sutil análise que Marx faz do espiritual, mais que a famosa e juvenil frase sobre a religião como ópio do povo: o espiritual está nesse feitiço, que faz da prosa, do mundo desencantado do dinheiro, a coisa mais encantada, mais enganadora. Numa palavra, é a feitiçaria que faz da vida humana espetáculo.
Mas esse débito com o marxismo não significa simpatia pelo comunismo. Debord se envaidecia de ter seu livro como a teoria presente nas barricadas do desejo, de Maio de 68, de que estavam ausentes os stalinistas. Sua crítica aos comunistas é severa.
Porque o essencial, para Debord, são os conselhos. Hoje esquecemos o que significa a palavra russa "soviete", mas é isso: conselho, assembléia popular com poder decisório. Os conselhos de operários, camponeses e soldados foram a melhor coisa da Revolução Russa -prenunciados, meio século antes, pela Comuna de Paris (1871)-, mas se viram rapidamente esmagados pela burocracia, com Lenin e Trotski.
Ora, o que os conselhos poderiam trazer? A criação do novo! Cabe ao conselho, claro, liquidar a dominação de classe, acabar com o poder da mercadoria, isto é, com um mundo em que os fantasmas do desejo assumem ilusória realidade num objeto banal que atrai, fascina, prende. Mais que isso, cabe-lhe acabar com a redução do próprio homem a mercadoria, já que seu trabalho é comprado e vendido como um quilo de feijão.
Essas metas, é certo, já existiam no marxismo e no partido leninista. Mas há uma diferença: para Debord, o conselho não é mera correia de transmissão do poder burocrático comunista, mas o lugar em que uma vida autêntica nasce, em que o confronto ao outro estoura as máscaras do espetáculo. Daí que essas metas não esgotem o papel do conselho, mas sejam apenas seu pré-requisito, seu começo. O conselho não é simples meio, como a política sexual proposta por Wilhelm Reich, na Berlim de 1930, não era apenas um meio a mais de atrair jovens para o comunismo: são fins em si. Um define uma sexualidade nova e livre, outro uma socialidade de novo tipo.
Enfim, alguém poderia lembrar-se, lendo Debord, de Hannah Arendt, que também critica a burocratização dos PCs e elogia os conselhos revolucionários -no caso dela, os da Hungria de 1956. Mas há uma grande diferença. É que Arendt recusa a temática social para seus conselhos populares, já que, a seu ver, os problemas sociais se referem à miséria e à carência, e não alcançam a dignidade do político.
Para Debord, ao contrário, a vida é algo positivo, que ele exalta, em oposição aos simulacros. E o social também o é. Daí que seu conselho popular já nasça com uma agenda: ele politiza a vida social e mesmo a vida. Ou melhor, ele mostra como são políticas a vida humana e a sociedade. E este foi o grande legado desse mito recente, "Maio de 68": ver a política em toda a parte, e não apenas no espaço institucional de eleições e potentados.
O livro de Debord apresenta uma das formas possíveis de pensar a sociedade como espetáculo. Mas o tema é antigo, começando provavelmente com Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère, no século 17, e tem seu grande modelo nas cortes reais, em que o rei se exibia à sociedade como um astro sedutor.
A modernidade, na medida em que é revolucionária, procura suprimir a separação entre o palco e a platéia. Na medida em que é reformista, tenta reduzir essa distância. E, quando é conservadora, aposta no aumento e sacralização desse abismo. Expliquemos.
Já os reformistas, na sociedade ou no teatro, entendem que a representação é inevitável. Vamos ao teatro para nos distrair: não aguentaríamos Zé Celso, ou Artaud, o tempo todo! O poder estatal deve ser controlado, sim, mas a democracia direta não é possível: aumentemos, então, a participação popular, mas sem ilusões sobre o seu alcance.
Finalmente, para os conservadores, quanto mais teatral for a representação social e política, melhor. Há teatro mais óbvio -e mais kitsch- do que o nazismo, com seus marmanjos fantasiados de soldados gritando o nome de um "macho man"? Mas, de forma bem mais amena, o mesmo princípio aparece quando se reduz a política à publicidade.
Toda vez que um publicitário diz que vai vender um candidato como se fosse um sabonete, a inspiração conservadora, de quem não quer mudar o mundo, mas investe no que ele tem de pior, ressurge. É cavar ainda mais o "canyon" entre o ator e o público. Uns agem, e, agindo, iludem seus espectadores. Outros, esgotados emocionalmente, incapacitados para agir, vêem televisão e se abstêm da coisa pública. O controle político promovido por essa divisão social da ação política é altamente eficaz.
Na medida em que aumentou o lazer, ampliou-se também a esfera da comunicação de massas, e é por ela que passa hoje a divisão de papéis entre quem age, ou produz, e quem é passivo ou consome. Toda política que seja, em alguma medida, democrática terá que criticar tal recorte e buscará, pelo menos, reduzi-lo. E um dos méritos dos trabalhos que discutem o caráter teatral da vida social ou política está justamente aí: em nos fornecer um critério para reconhecer, e promover, o democrático.

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