São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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O coro de queixosos

BRUNO LATOUR
ESPECIAL PARA O "LIBÉRATION"

Hoje em dia, me parece, todos criticam a sociedade do espetáculo. A cada ano são lançados cem livros denunciando a falta de autenticidade das mídias, a implacável degradação da cultura, as mentiras de nossos representantes. Não há um escritor, um político, um homem de televisão que não lamente todas as manhãs a era do vazio na qual teríamos ingressado devido a essa trágica obrigação de representar nossas vidas por um espetáculo, em lugar de vivê-la, simplesmente.
É verdade que a nostalgia, a crítica, o desencanto abrem a possibilidade de obtermos belos efeitos de estilo, no gênero Chateaubriand, que Debord, com uma ousadia rara em nosso século, soube readaptar. Apesar disso, acho que só podemos homenagear esse grande estilista fazendo como ele: nos negando a acreditar nele e rejeitando os elogios que caem sobre suas cinzas como punhados de terra.
Aqueles que tecem louvores tão tardios a ele não explicam o que poderia se opor à sociedade do espetáculo, nem de que outra sociedade ela teria esvaziado o conteúdo. Trata-se de sociedades do passado, nas quais se vivia, simplesmente, existências plenas e autênticas, sem nenhuma manipulação ou representação? Mas de que modo a Versalhes de Saint-Simon, a Paris de Julien Sorel, o salão de Madame de Guermantes seriam menos espetaculares, menos preparados, menos mediatizados do que os relatos da Guerra do Golfo ou as partidas esportivas televisionadas?
Será que eles querem dizer que existiriam sociedades tão duradouras e tão seguras de si que não teriam nenhuma necessidade de se representar, e que os acontecimentos seriam recebidos como aquilo que são, objetivamente, sem tambor nem trombetas? Que nos mostrem, então, onde encontrar essas ilhas maravilhosas. Nós, terráqueos, em todo caso, precisamos desses relatos para compreender o que nos acontece e o que nos liga uns aos outros. E precisamos de histórias novas a cada dia para saber quem somos e o que queremos.
Aquilo que se aplica à sociedade como um todo também é verdade com respeito à nossa psicologia pessoal. Somos obrigados a nos narrar "reality shows" durante o dia inteiro e a representar, uns para os outros, o espetáculo de nossas vidas. São falsos esses espetáculos? Mas com o que se pareceriam os monstros capazes de sobreviver sem eles? Nem mesmo com robôs programados.
Aqueles que se queixam inutilmente da sociedade do espetáculo alegam que a sociedade deveria conhecer-se diretamente, sem truques e sem intermediários, sem jornais nem televisão, sem preparo prévio e sem direção de cena. Mas, baseando-se nisso, quem são os mais incultos? Aqueles que sonham com um contato transparente com a realidade objetiva, ou aqueles que, a cada manhã, se perguntam como dirigir, iluminar, dublar, sonorizar, reproduzir, extrair, traduzir, transcrever, trair a informação e o acontecimento? Quem são os maiores artistas? Os mais civilizados? Aqueles que crêem no trabalho da mediação ou aqueles que imaginam poder passar sem ela?
O fato é que as sociedades -pelo menos aquelas que conhecemos- não são dadas de uma vez por todas. Elas se constroem aos poucos e se reconstroem diariamente, impossibilitadas de se manterem inertes. Assim como a palavra "política", a palavra "espetacular" não pode parar de se compor, dia e noite. Longe de ser uma atividade indigna e supérflua, a realização do espetáculo reengendra o corpo social. Somos todos "filhos de nossas obras" e, sem elas, não teríamos rosto.
Uma hipótese mais generosa é que os queixosos talvez lamentem a má qualidade dessa arte comercial que permite à sociedade compor uma história e uma identidade, dia após dia. Eles provavelmente têm razão, mas será que pensaram em subtrair de sua amarga contabilidade a dimensão das sociedades, a qual se trata de narrar a elas próprias? Que histórias é preciso criar para falar a dezenas de milhões de concidadãos, e não a dezenas de normalistas?
Eles são maliciosos, na minha opinião, se o sabem com suficiente certeza para desprezar radicalmente a sociedade do espetáculo. Eu me pergunto se sua campanha contra a degenerescência não oculta o velho ódio às massas (entendidas, muito erroneamente, como multidões semelhantes a rebanhos), e se, nas queixas lancinantes que fazem da industrialização, da uniformização e da vulgaridade, não é, pelo contrário, a multiplicidade de vozes incontroláveis que mais os choca.
Rejeita-se o lento e necessário trabalho da "re-presentação", da seleção, da encenação e do relato em nome de uma era dourada em que se podia falar a verdade e tomar decisões rápidas, sem nenhum intermediário. Mas quem é que realmente deseja, no íntimo, transformar os mediadores em intermediários transparentes?
Quem quer simplificar o jogo político e mediático a esse ponto? Quem quer viver sem deputados, sem televisão e sem deputados na televisão? Aqueles que quiseram fazer melhor não fizeram pior, sempre? Me parece que quem acredita compreender Debord, rejeitando a sociedade do espetáculo, faria bem em se colocar essa pergunta.
Sob que aspecto, aliás, faltaria realidade à produção do espetáculo social, ou esta seria marcada por uma ausência maior de autenticidade? Para redigir um noticiário, não são necessários pesquisadores e telex, antenas e satélites? Para produzir um CD-ROM, não são necessários financistas e técnicos em informática, "scanners" e aparelhos para criar imagens? O que há de irreal ou falso em tudo isso?
Todos esses arranjos complicados podem dar errado, como bem se sabe nos meios profissionais, e o caráter industrial ou comercial dessas encenações não elimina o risco em que se reconhece, para cada um de nós, o contato estreito com o real. O vento pode destruir o cenário construído a alto custo, as cores do CD-ROM podem perder sua qualidade e, quanto aos telespectadores supostamente submissos, entediados, dominados, mecanizados, americanizados, eles podem "zapear" descontroladamente, desse modo escapando daqueles que bem que gostariam de poder dominá-los. Como as pessoas da mídia gostariam de possuir todo o poder maligno que lhes é atribuído por seus críticos!
Não sei se Guy Debord sofria por ter tido razão cedo demais e por um coro de queixosos ter se juntado a ele, ainda em vida. De fato, existe algo de atroz no impasse do pensamento crítico e em sua incapacidade de compreender o mundo em que vivemos. Será que ele quis escapar da armadilha erguida por sua própria crítica, ou da sociedade do espetáculo que ele acreditava haver criticado?

Tradução de Clara Allain.

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