São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os novos teocratas

GORE VIDAL
ESPECIAL PARA O "THE NATION"

A data de 18 de junho de 1997 provou ser mais um dia marcado pela infâmia na história do "The Wall Street Journal", ou a.m.i.p.d.m., "a mais importante publicação do mundo", como ele descreve a si mesmo -alegremente inconsciente de quão desconhecido é esse jovial diário neofacista para a maioria dos americanos, sem falar daqueles muitos bilhões que habitam as trevas, onde os lampejos sulfurosos do tablóide de Wall Street nada mais são que o gás dos pântanos, exalado dos confins do lunático império.
Nesse dia, 18 de junho, a.m.i.p.d.m. comprou um anúncio no "The New York Times", o jornal que imprime apenas as notícias que se adaptam à sua mentalidade não-divergente. O anúncio reproduzia um editorial de a.m.i.p.d.m. intitulado "Moralidade moderna", um assunto que eu considerava alheio às paixões intrínsecas de ambos os jornais. Mas, afinal, a moralidade para os americanos não tem absolutamente nada a ver com a ética, a ação correta ou quem rouba qual dinheiro -e liberdades- de quem. Moralidade é sexo, sexo, sexo.
O chumbo do editorial chia de tão quente. "Na mesma semana em que um general do Exército, com 147 missões de combate no Vietnã" (lembram-se da Guerra "Verdadeiramente Boa", para muitas das cotações da Dow Jones?), "pôs fim à sua carreira em virtude de um adultério ocorrido 13 anos atrás" (aqui, a.m.i.p.d.m. tem motivos sólidos, nem o general, nem Lady Flinn, nem nenhum outro combatente deve ser punido por adultérios não cometidos quando de sentinela durante o ataque inimigo) "surgiu a notícia" -adoro essa frase, num jornal de poderosa opinião e tão poucas notícias- "de que, durante o baile ginasial, uma garota de Nova Jersey deu à luz um bebê no banheiro, depositou-o no lixo e saiu para pedir ao DJ que tocasse uma música do Metallica -para seu namorado. O bebê está morto".
Iludido pelo termo "garota", visualizei uma menina pubescente, tomada de pânico. Mas dias depois, quando uma certa Melissa Drexler foi indiciada por assassinato, ela foi corretamente identificada pelo "Times" como uma "mulher, 18". Numa foto, recentemente publicada, em que ela figura com seu amante, o casal parece ter seus 30 e poucos anos. No entanto, convinha a a.m.i.p.d.m. desfigurar a sra. Drexler como mais uma criança inocente, corrompida pelo laissez-faire dos "valores" liberais americanos, tão diversos do laissez-faire do capitalismo, o supremo bem.
Tudo isso é "caos moderno", lamenta o escritor. Diria, antes, que tudo isso não passa da simples e antiquada estupidez americana, onde a maioria apalermada pela religião é cinicamente instigada pelo "establishment" dominante, cuja voz mais raivosa é o "The Wall Street Journal".
"Não contamos com nenhum bom conselho de como o país poderá, num futuro próximo, livrar-se de um atoleiro de confusão sexual..." Você pode dizer isso novamente, e, é claro, o fará. Portanto, em vez de dar maus conselhos, pare e desista de comprar anúncios para censurar algo chamado "Os Liberais". Num país evidentemente dividido entre reacionários políticos e maníacos religiosos, é tão difícil ser liberal quanto uma árvore -ou mesmo uma sarça ardente- ambulante. Mas o escritor deixa claro que o general condenado foi julgado injustamente, ao passo que a "garota" com o bebê é uma estatística a ser explorada pelos jornalistas de direita, eles próprios, de hábito, muito distantes das odiosas hostes dos ouvintes de Metallica, que jogam bebês em lixeiras -uma situação péssima, que se poderia ter evitado pelo uso, digamos, de uma camisinha quando a "garota" e o "moleque" fizeram sexo.
Mas, não. Eles nos garantem que o caos moral é resultado da educação sexual e do fato de se "cobrir o atoleiro", como diz o anúncio, com "preservativos que, no decorrer dos últimos cinco anos, foram distribuídos pelos adultos encarregados de nossos ginásios... ou pelas máquinas situadas, por coincidência, dentro dos banheiros".
Supostamente, o confessionário seria um foro melhor, se permitido. Assim, de um lado é ruim, como todos concordamos, que uma mulher dê à luz e depois abandone o bebê; mas, de outro lado, também é errado, por alguma razão metafísica, ajudar a prevenir que ocorra semelhante parto. Não há sentido algum de causa-efeito quando estes gansos começam a grasnar. Claro, a.m.i.p.d.m. tem as suas próprias diretrizes: fora do casamento, nenhum tipo de sexo para as classes mais baixas e um policiamento de todos, inclusive generais e pessoas de fato estimadas, graças aos mesmos liberais que, agora, "nada proíbem e nada punem". Tal raciocínio põe a carroça na frente dos bois.
O código sensato observado por todo o mundo (exceto pelo monoteísmo de certos judeus, cristãos e muçulmanos fundamentalistas) é que relações "consensuais" no tocante ao sexo não são assunto do Estado. Os Estados Unidos sempre foram retrógrados nessas questões, em parte por causa de suas origens puritanas, em parte por causa dos ajustes sociais alcançados durante vários milênios de intensa vida agrária em família, rispidamente contestados há um século, apenas, pela Revolução Industrial e pela ascensão das cidades e, nos últimos tempos, pelo mundo pós-industrial da prestação de serviços, no qual a prostituição "segura" devia ser, a essa altura, uma jóia reluzente.
Embora a "ladainha" (um termo predileto na direita) no anúncio do "Times" seja em boa parte retórica e não deva ser tomada a sério, o espírito por trás de todo este palavrório é curiosamente hipócrita. A.m.i.p.d.m. não está interessada em moralidade. De fato, qualquer empresa capaz de aumentar os lucros trimestrais por meio do envenenamento de um rio há de ser tida em alta estima.
Mas o texto reflete certo mal-estar com que as pessoas em geral, e, de maneira mais visível, pelo sexo, possam estar buscando libertar-se de seus senhores, que se tornam tanto mais insolentes e exigentes em suas proibições -um deslize e você já era, é o mesquinho segredo deles. Em meio à ladainha, o texto quase chega ao que realmente importa: "Muito simplesmente (sic), o que sugerimos aqui é que o código de conduta sexual, anteriormente imposto pela religião estabelecida nos Estados Unidos, mais ou menos mantinha a saúde da sociedade, ao contrário da catástrofe hoje manifesta". Aí está. Onde se acha Norman Lear, criador de "Mary Hartman, Mary Hartman", agora que precisamos dele? E, então, uma voz queixosa de mulher, chamando "Hester Prynne, Hester Prynne!", enquanto assoma na tela um pulsante "A" escarlate.
Tão "arrière-garde" que muitas vezes é "avant-garde", a.m.i.p.d.m. tem, na verdade, algo em vista. Embora eu não deva pensar que alguém em suas instalações jamais tenha ouvido falar de Vico, o filósofo napolitano do século 18, o leitor há de lembrar que Vico, partindo de Platão, estabeleceu várias fases orgânicas na sociedade humana. Primeiro, Caos. Depois, Teocracia. Depois, Aristocracia. Depois Democracia -mas como as repúblicas tendem a tornar-se imperiais e tirânicas, elas colapsam e voltam ao Caos e à sua infantil Teocracia e a um novo ciclo.
No presente, os Estados Unidos são uma república imperial ligeiramente caótica, rumando para a saída -nada de mau, a não ser que haja uma séria erupção do Caos, e, nesse caso, teria início uma nova era de religião. Qualquer um que tenha zelado por nossa velha república, não importa o quão viciada ela sempre foi pela exuberância religiosa, não pode não preferir o Caos à ríspida lei dos Teocratas. Hoje, pode-se vê-los em toda a sua selvageria em Israel e em certos países islâmicos, como o Afeganistão etc.
Felizmente, sua organização social até agora ainda não foi páreo para o desejo universal por bens de consumo, esse admirável mundo novo na margem da democracia. Quanto aos americanos, ainda aguentamos firme contra nossos próprios louva-a-deus -em sua maioria, fundamentalistas cristãos acumpliciados com um capitalismo decadente e atroz, escravizado pelo totalitarismo, como se proclama tão picantemente no "The New York Times" de 18 de junho de 1997.
A linha de batalha está sendo traçada. Enquanto a infeliz "garota" em Nova Jersey instruía o DJ, a direita cristã organizava-se para vasculhar a permissividade no divertimento. Em 18 de junho, os batistas do Sul, em sua convenção anual, denunciaram a empresa Disney e sua rede de televisão, a ABC, por mostrar uma lésbica como ser humano, por deleitar-se na violência de "Pulp Fiction", por zombar dos valores da família cristã. Não vi todo o rol em seus pormenores (foi distribuída uma lista de mais de cem "propriedades" a serem boicotadas), mas tudo isso soa como um depoimento antejudicial dos dias de glória de Salem. Embora eu tenha criticado, o cartel Disney por sua dominação da mídia, tenho agora de alinhar-me com o octópode desafiado.
Este é o momento para a Disney lançar todo o peso de sua fortuna sobre os batistas, que precisam de uma lição constitucional que não esquecerão tão cedo. Eles deveriam ser levados a juízo com base na usual ofensa à Primeira Emenda, assim como no cerceamento do comércio. Além disso -e agora, por fim, chegamos à raiz do problema- a isenção de impostos para a renda de todas as igrejas, dos batistas até os igualmente absurdos -e igualmente nocivos- cientólogos tem de ser removida.
O antigo acordo de cavalheiros entre a Igreja e o Estado previa que "Nós o Povo" (o Estado) de modo algum auxiliaria ou impediria qualquer religião, muito embora, distraidamente, ao observar que a religião é uma "coisa boa", permitisse à igrejinha na Elm Street não pagar o seu imposto predial. Ninguém considerava que os terrenos mais valiosos, no coração da maioria de nossas cidades antigas, estariam isentos de impostos, ao mesmo passo que as igrejas e os templos aumentavam suas carteiras de ações. O "quo" desse enorme "quid" era a religião ficar de fora da política e não impor suas superstições sobre "Nós o Povo". O acordo rompeu-se dois anos atrás. A carreira escandalosa do reverendo candidato presidencial Pat Robertson é um paradigma.
Como o Congresso jamais agirá, é preciso que o movimento para emendar a Constituição tenha base popular, muito embora a Primeira Emenda não diga uma palavra sobre isenções de impostos, ou quaisquer outros privilégios, para igrejas, templos etc. Essa é uma guerra útil para a Disney, embora eu reconheça que a única coisa mais covarde do que um estúdio cinematográfico ou uma rede de televisão é um conglomerado forçado a agir às claras. Mas, se você não lutar, Lord Mouse, seu próprio traseiro de roedor será fustigado por 15,7 milhões de batistas, para não falar dos traseiros do restante de todos nós.

Tradução de José Marcos Macedo.

Texto Anterior: O coro de queixosos
Próximo Texto: O mundo ao alcance da mão
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.