São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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A experiência visionária

ANTONIO MEDINA RODRIGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O Arco-Íris Branco", de Haroldo de Campos, abre-se com assunto amoroso, para comentar a produção final de Goethe. Perto dos 65 anos, Goethe empreendera uma viagem de repouso a Wiesbaden, mas decidira passar por Frankfurt, cidade onde nascera. E, quando se afastava de Weimar, seus olhos, em plena madrugada, foram convocados por um arco-íris branco. Foi uma visão profética: "O arco é branco, sem dúvida, mas é no entanto um arco celeste. Se teus cabelos são brancos, não obstante tu amarás". Tal é a premissa inicial do primeiro dos 16 ensaios que Haroldo acaba de publicar. No que diz respeito a Goethe, essa visão acabaria dividindo a sua vida em duas metades.
Foi também uma visão astrológica, porque logo depois Goethe viria a conhecer aquela que ele amou secretamente até a morte, e que lhe inspiraria as páginas mais belas desse último périplo da vida. Certamente não foi a única paixão desse poeta. Mas foi a mais profunda, a mais animadora. Chamava-se Marianne Jung. Tinha 30 anos e era casada com Willemer, um banqueiro, amigo e anfitrião de Goethe. Marianne contava 15 anos quando fora "adotada" por Willemer, que a trouxera para acompanhar as filhas. Na época, trabalhava em alguns teatros populares de Frankfurt, como dançarina coadjuvante. Na casa do banqueiro adquiriu a formação que lhe faltava (e que de outra forma não teria). Vinha da pobreza, e chegou mesmo a ser hostilizada por Brentano, com quem, aliás, deve ter tido algum envolvimento.
E o grande Goethe se encantou com ela. Pois ela era o que dizia o arco-íris, e não lhe faltavam as virtudes da poesia, que não praticava, mas trazia à flor da pele. Entretanto -eis a questão-, depois de estrofes ao luar (de um para o outro), nunca mais os dois se viram. Corresponderam-se por 20 anos. Ela lhe mandava poemas, alguns dos quais ele incluiu em seu "Divã Ocidental-Oriental", sob o nome Zuleika (e há quem diga que alguns dela são melhores do que os dele).
Esse arco-íris branco é dos momentos mais belos do livro. É também dos mais persuasivos, para aquilo que Haroldo quer mostrar, a saber, que, a partir daquela meteorese, o trabalho de Goethe se agiganta, tanta força nele pôde despertar o olhar de uma mulher! Não sabemos o que ele sentiu. Mas podemos contemplar os resultados. Goethe, a partir daí, abre-se para a "literatura do mundo", para a absorção clássico-germânica de tradições e culturas muito férteis, porém minoritárias, e quase esquecidas, como a da poesia islâmica e, sobretudo, persa. O "Divã Ocidental-Oriental" passa a ser percorrido por toda uma orientalização fascinante, que Haroldo, muito justamente, entende como o resultado de uma ampla tradução, desencadeada a partir dessa estranha experiência pessoal.
Haroldo, entretanto, focaliza as consequências poéticas, mais do que as razões idílicas. Pois essas são nebulosas, e aquelas estão à luz do dia, apontam para uma transformação sem precedentes, que não apenas transformação da vida em texto, mas transformação da vida em vida. Essa me parece, até agora, a formulação mais abrangente que Haroldo faz do tema da tradução. O ensaio não é longo, e tem o ritmo de uma saga lírica. Compõe-se de uma polaridade, o arco-íris e a tradução. O andamento lírico da prosa não admite desdobramentos. Não obstante, nós queremos mais. Pois duas coisas ficam reticentes. Qual o papel verdadeiro do arco-íris? Como ele se transformou em poesia? O Divã ("divã", na língua persa, é "coletânea") seria um cisma entre a Europa napoleônica e as promessas do Oriente ou teria sido o resultado de uma busca da poesia pura em pleno classicismo? E finalmente: qual a eficácia daquele amor?
Um arco-íris, parece-me, só faz amar a quem já ama, e o que parece profecia pode ser sintoma, e sintoma subjetivo, coisa que, em termos clássicos, responde sempre à introjeção de regras. Possivelmente o amor de Goethe já existia. E o arco-íris lhe apontara a direção da amada, este ser virtual em busca de um acidente. A prova é que o poeta pôde amar à distância, tanto antes como depois de conhecer a moça. É como se apenas a espera contasse nesse amor. Pois não houve envolvimento, ao contrário do que houve entre Hõelderlin e Diotima (a crer nas cartas reunidas por Hesse). Houve, quando muito, a clássica sublimação, por meio da poesia. Desta é que o poeta não se pôde separar. Em seus resultados, este foi um caso um pouco semelhante ao de Kirkegaard, que renegou a noiva para casar com a filosofia. "Transforma-se o amador na cousa amada..."
Marianne e o arco-íris devem ter sido belos acasos. Pois não é "qualquer" acaso que produz a poesia. É preciso uma certa conjunção astral. Algo da natureza deve gloriosamente confirmar a hora, fazer a síntese entre o espírito e os eventos. Tudo se passa entre Goethe e sua alma, e entre a alma e os caprichos da cosmologia. Teria vindo daí o impulso para a história? Teria sido em função desse amor que o poeta passou a traduzir um novo mundo, uma nova diacosmese? Ou teria sido o contrário? O arco-íris fora um signo, certamente.
Um signo da natureza, um sinal. Estes signos fazem com que nunca mais sejamos os mesmos. Não obstante, a branca aparição fora absorvida pela Anima (no sentido provençal) de Goethe. A natureza fora controlada. Isso, enfim, é classicismo. O ego, "interesse" astrológico, venceu a liberdade infinita que os astros oferecem. Rendeu-se o arco-íris ao sujeito.
E é por isso que Haroldo aí fala de "tradução" em termos de enteléquia, de mônada, enfim, de idéia. Pois essa é a tradução que o mundo clássico permite. A natureza ainda é apenas uma bela senhora de bom senso. A natureza, portanto, sobra solitária aquém do arco-íris. E, se não fosse assim, ela só poderia ser o corpo de Zuleika, o único que poderia contar, em vez de novos topos, nova história. Goethe, portanto, não amaria de fato, ou, o que dá no mesmo, teria "traduzido", num contexto orientalista, o velho topos neoplatônico ("o amor do amor") inaugurado pelo catarismo provençal.
Esse amor do amor é ainda a herança mais forte do idealismo lírico moderno. O que não nega que o poeta haja sofrido, como Haroldo bem o mostra. Mas Goethe não sofreu do corpo ou da existência tanto como sofreria dos signos, ou seja, das mônadas, das idéias, que são as unidades poéticas da tradução, em sua busca de afinidades "químicas", busca de uma nova poesia. Por isso é que Haroldo, nesse caso, bem entendido, limita a tradução à idéia de reinterpretação e mudança, e que, no limite, também define a própria literatura como tradução contínua.
Como o método de Haroldo é finalista, ou seja, interessa-se pelos resultados, é compreensível que ele não se preocupe com possibilidades não realizadas. No entanto, estas também são importantes para a tradução, tanto mais quanto se considere esta última como um processo histórico e totalizador.
A dúvida é se teria havido em Goethe uma profunda transformação de natureza ou uma nova intuição de realidade eficazmente comprovável na poesia. O mais seguro, porém, é que o poeta ainda trabalhasse com a "química" dos gêneros literários, clássicos ou medievais. O que, por sinal, não desmerece obra nenhuma. O classicismo, quando não foi abandonado, acabou fomentando as correntes autonomistas no pensamento literário. Ele é convencional, e isso lhe dá uma liberdade composicional que, no limite, o aproxima da audácia das matemáticas. Sem a história, sem a dialética da efetividade ou da matéria. A tradução tem que contentar-se com a formalidade pura. Foi o que fez Haroldo nessa passagem.
Já nas "Questões Fáusticas" (1981), temos impressão distinta, porque aí entra em cena a tradição popular, que, por conta própria, elegera a linguagem desabusada e inventiva da sátira. Haroldo pôde aí expor mais ricamente a questão dos fundamentos, que, havia 15 anos, empolgava a tarefa crítica. Esse é um momento em que Haroldo se entrega à discussão da literatura como fato físico, semiótico e social. Haverá, portanto, uma confluência entre um formalismo radical e um materialismo de princípio. Há nessa entrevista uma intenção de clarear fronteiras, a ponto de Haroldo, a sério, enfatizar que não acreditava em demônios.
Aí até vai sua cautela contra as confusões. E é aí mesmo que se define seu realismo, um pouco na linha do jovem Jakobson, para quem a realidade vinha a ser a síntese entre os efeitos físicos e as relações formais. Daí a materialidade da linguagem, e mais algumas teses que não destoam do marxismo clássico: a materialidade da consciência, a vida como ação e transformação, a consciência como constituição sígnica, a revolução formal (Maikóvski) e, sobretudo, a dimensão da materialidade como um non plus ultra da existência. Não são teses anti-religiosas. São teses formais.
Ora, esse realismo talvez seja resultado da contínua luta contra o impressionismo e o sociologismo (que difamam a linguagem), contra os harpejos do coração etc. O realismo de Haroldo é contra o realismo. Isso de um lado. Do outro lado, a condição material da linguagem só poderia dar a esta um estatuto próprio, tal como acontece com as coisas, que, por serem coisas, abrem um campo de objetivação particular. Isso, por fim, deu a Haroldo uma grande vitória, hoje reconhecida por muitos. Mas, do ponto de vista metacrítico, a questão do realismo, que complementa a da tradução, alimenta alguns problemas desde, pelo menos, um ensaio de 1962, republicado agora, e que é uma das mais importantes páginas críticas que se fizeram nos últimos 50 anos ("Arno Holz - Da Revolução da Lírica à Elefantíase do Projeto").
Atento à revolucionária produção de Holz, Haroldo entende que o realismo deste último vinha do tratamento da linguagem como coisa ("das Das"), e coisa material. O que Haroldo quer dizer é que as palavras, tal como as coisas, pedem trabalho, suor, e tudo isto se vincula a um projeto de intervenção na cultura. Indiretamente, isto confinaria com o outro realismo, o chamado realismo escolástico, representado, entre os modernos, pelo grande Charles Peirce, para quem todas as significações são "reais", ainda que não sejam coisas. Mas a insistência, ainda que propedêutica, em que as palavras sejam coisas apaga um pouco a idéia de "processo", que é muito mais importante na ciência moderna, e que é o que dá conta do que hoje denominamos natureza (ou Efetividade, ou Mundo etc.).
Vimos que tinha sido como coisa (ou como idéia) que Goethe usurpara a natureza em seu arco-íris branco, para os efeitos de seu classicismo, e que fizera Haroldo balizar seu conceito de tradução a um plano de universidade clássica. Uma coisa tem um fim. É constituída para ter um fim. A natureza, não. Os processos da natureza podem ser fatais. Mas não têm partido. São a própria liberdade de engendrar as formas novas, não através de um cogito que legisle, mas através da interação com a vida. Uma interação que não são coisas e que não mostra finalidades.
Schiller notava que a percepção desse fenômeno era o que fazia a diferença moral entre os homens. Enfim, a coisificação das formas da linguagem não é menos idealista do que o idealismo que se quer combater. De qualquer forma, esta é uma idéia literária e, como todas as idéias literárias, tem pouca densidade no trabalho propriamente criador.
Assim, a materialidade dos signos não estaria em sua fisicalidade, mas no fato de eles mudarem o destino sem determinarem linearmente a trajetória do destino. Trata-se de um jogo, e a fórmula de Holz ("a arte é igual à natureza menos x") é uma antecipação do bicho desenhado por Wittgenstein, que, visto de um jeito, é pato, mas, visto de outro, é coelho. (cf. "Investigações Filosóficas"). A natureza (= Efetividade) é quebrada a toda hora. O mesmo acontece com o signo. Entre uma coisa e outra lança-se o caminho da criatividade, a incerta épica da vida, que deve ser gratuita para ser plena.
Paradoxalmente, é isso mesmo o que acontece no trabalho de prosa de Haroldo de Campos, só que de maneira conflitiva, embora coerente. Há um Haroldo que busca o sublime, na prosa como na poesia. E há um Haroldo que desenvolve todas as premissas para chegar a tal sublime. Há extrema coesão entre uma parte e outra, e mesmo uma dosagem primorosa entre as frases paratáticas e as argumentais. E há também um crescendo na figuralidade, que caminha no sentido das paratáticas. No limite, o alvo deste crescendo nas figuras é o absoluto, ou seja, a intuição do universo desprovida de qualquer acaso, qualquer efetividade.
Para tanto, é preciso que a figura tome conta dos olhos, invada a carne, a alma, paralise a vida. Esse fenômeno, essa experiência fenomênica da consciência por si mesma, é continuamente associado às leituras que Mallarmé fizera de Hegel (mas deve-se pensar também em Gôngora). De qualquer forma, elas mudaram a história da poesia. Ora, a prosa de Haroldo vem buscando essa experiência, que nós poderíamos chamar nirvânica ou visionária. Ela não atrapalha o Haroldo argumental. Ao contrário, ela o mostra. Mostrar é melhor do que explicar. Mas, como essa mostragem é seletiva, ela apenas mostra a síntese de sua própria argumentação, e isto é que é criticamente problemático.
A Efetividade, nesse caso, se limita ao interesse, e isto é o que fere por princípio a toda uma tradição de crítica inaugurada por Kant e pelos românticos. Enfim, é uma escolha. Não digo que seja uma escolha sem regresso. O próprio Mallarmé tinha horror ao chegar às portas daquele absoluto que ele tanto procurava. O que prova a Efetividade nos faz regressar ao relativo. Não às convicções. Porque estas são outros absolutos.

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