São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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Um artífice da linguagem

ROBERTO VENTURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Augusto e Haroldo Campos levam Euclides da Cunha a campos pouco navegados. Os poetas revelam, nos dois ensaios de "Os Sertões dos Campos", um Euclides subterrâneo: o artífice da linguagem ou o engenheiro das palavras, preocupado, de forma obsessiva, com o ritmo e a sonoridade de sua narrativa sobre a Guerra de Canudos, cujo centenário é rememorado neste ano.
"Tiroteios durante o dia todo", "rastejar serpejante de grandes sáurios silenciosos" são algumas das expressões que ficam gravadas na memória dos leitores de Euclides. O escritor retomava sons, martelava ritmos e empregava metáforas e comparações para estilizar, em sua prosa, os movimentos e as sensações da natureza e da história.
A poética de "Os Sertões" tem sido deixada de lado por muitos de seus intérpretes, mais voltados para a discussão dos aspectos históricos e científicos do livro, tidos hoje como superados. É o caso da teoria racial que Euclides seguia, com a idéia de inferioridade do negro e do mestiço, ou de uma visão negativa e preconceituosa de Canudos e da atuação de Antônio Conselheiro, o líder da comunidade.
A permanência da obra se deve a sua construção poética, com uma escrita imagética e um admirável uso da retórica, em que o jogo de antíteses e contradições indica os próprios conflitos do autor como observador da guerra, no julgamento da ação das tropas da República, que massacraram os seguidores do Conselheiro. Explica-se também pelo impacto que causou na opinião pública com a visão de um país fraturado por tempos históricos e mundos culturais conflitantes.
Canudos é, para Euclides, a "Tróia de taipa dos jagunços". O sertanejo é um "Hércules-Quasímodo", desgracioso e energético, heróico e grotesco. Seu líder é um "pequeno grande homem", que entrou para a história, como poderia ter ido para o hospício. O escritor superou, assim, seu tema particular, a guerra nos sertões da Bahia, para criar uma obra híbrida, que abole as fronteiras entre a literatura e a história.
Prosa sinuosa
Augusto de Campos trata da poética de Euclides em "Transertões", um dos ensaios do livro, já publicado no Mais! (3/11/96). A sonoridade desse estilo sinuoso já foi comentada por Guilherme de Almeida em artigo dos anos 40, por Modesto de Abreu em "Estilo e Personalidade de Euclides da Cunha" (1963) e por Franklin de Oliveira em "Euclydes - A Espada e a Letra" (1983).
Augusto de Campos mostra como o escritor inseria, em sua prosa, recortes métricos, com versos de 10 ou 12 sílabas, para construir episódios de grande dramaticidade, com efeitos eloquentes próprios à poesia declamada. Destaca o rodeio de vaqueiros, em que a colisão de sons nasais, vocálicos e consonantais imita a batida de cascos da boiada.
Cria, assim, poemas a partir de passagens de "Os Sertões": "De repente/ estruge ao lado um/ estrídulo tropel de cascos sobre pedras,/ um/ estrépido de galhos estralando". Oswald de Andrade já fizera o mesmo nos anos 20, ao remontar as crônicas dos viajantes coloniais em seus poemas de redescoberta da terra de "Pau-Brasil".
Euclides neobarroco
Haroldo de Campos aborda, em "Da Transgermanização de Euclides", segundo ensaio do livro, a tradução alemã de "Os Sertões". Berthold Zilly recebeu, por "Krieg im Sertão" (Suhrkamp), o Prêmio Wieland de tradução em 1995. Fez uma recriação primorosa da obra, em que chegou ao requinte de recorrer ao vocabulário alemão do final do século passado para captar sua ambiência linguística.
Ao retratar a vida do homem do sertão, Euclides descreveu o estouro da boiada a partir de uma tal concentração de recursos expressivos, como a aceleração rítmica e a repetição de figuras sonoras e sintáticas, que os milhares de animais desgovernados acabaram transfigurados em um corpo único, monstruoso e fantástico, sobre o qual se lança o vaqueiro em disparada. Baseou-se no relato que ouviu de um boiadeiro de Minas Gerais, capaz de reviver a avalanche com tal intensidade que a terra parecia tremer sob seus pés e até o ar cheirava a chifre queimado.
Haroldo analisa a versão alemã do estouro da boiada para concluir que o tradutor conseguiu recuperar, em outra língua, a expressividade sonora da escrita singular de Euclides. Zilly realizou, assim, uma transposição plena da forma, de acordo com o ideal do crítico Walter Benjamin, para quem toda tradução é transcriação dos aspectos inapreensíveis misteriosos e poéticos da obra de arte verbal.
Discute também, em seu ensaio, o barroquismo de "Os Sertões", em que o uso voluptuoso de termos científicos e o gosto do exagero lembram a poesia cósmica do "Eu" de Augusto dos Anjos. Retoma observações que fizera antes, em "O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira" (1989), sobre o estilo magnificente de Euclides, que se disseminaria até a ficção de Guimarães Rosa ou o cinema de Glauber Rocha.
Com sua defesa apaixonada do lugar do barroco na literatura brasileira, o poeta-crítico descobre um Euclides que se aproxima, pelo excesso verbal, do estilo rebuscado de Gregório de Matos ou do Padre Vieira. E que converge ainda, pela ruptura de gêneros, para a narrativa-viagem do próprio Haroldo, que assim deu começo às "Galáxias" (1984): "E começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso".
Resta aguardar que Haroldo de Campos volte a enfocar, em um ensaio mais amplo, os traços barrocos de "Os Sertões". Afinal, do estilo retumbante de Euclides da Cunha pode-se dizer o mesmo que este já escrevera sobre as reviravoltas climáticas do sertão: "É uma mutação de apoteose".

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