São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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As seduções do detalhe

KATHRIN H. ROSENFIELD
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há autores que merecem, sempre de novo, um novo ensaio. Leda Tenório da Motta, no seu livro "Lições de Literatura Francesa", escolheu tais autores -de Montaigne a Ponge, passando por Baudelaire, Flaubert e Proust. Uma breve parte final trata de "Outros Mestres" -Sade, Céline, Cioran, Barthes e Kristeva-, embora não fique evidente por que foram segregados do primeiro grupo, já que todos pertencem, de alguma maneira, à tradição dos "libertinos".
Na sua aparente diversidade, os autores escolhidos são, além de poetas e romancistas, pensadores. Mais ainda, todos eles são grandes apreciadores do detalhe, da aparentemente ínfima marginália, que se torna, sob a poderosa lente poética, um novo centro, um coração pulsante que insufla nova vida ao desprezível e vulgar, ao insólito e ao comum. O gosto do diminuto, que obriga o olhar a aguçar sua precisão e o pensamento a treinar sua agilidade, tende a afastar e, às vezes, até a alienar os poetas-pensadores do convívio "normal", da sociabilidade e da comunicação convencional.
No século 17, chamavam-se "libertinos" homens que partilhavam apenas o gosto pela independência e pelo livre-pensar, mas que faziam cada um da sua liberdade um uso bem diferente. O que unia devassos frívolos, estudiosos eruditos e espíritos contemplativos ou poéticos era uma certa visão -entre lúcida e pessimista- da condição humana, da instabilidade das paixões e da miséria da vida mundana. Mas, no lugar da "homilitas cristã", surge agora o vigor de uma sensibilidade aguda que se transforma em consciência ágil e em virtuosismo intelectual. São estas novas qualidades, associando sensibilidade e espírito, sentidos e intelecto, que unem autores tão diversos quanto Sade e Ponge, Cioran e Montaigne, Proust e Flaubert.
A autora não explicou esta lógica secreta da escolha. Ela aborda cada autor separadamente no estilo da intelectualidade francesa dos anos 50 a 80, que dispensa a maioria dos seus precursores, a crítica do século 19. Este estilo intelectual parisiense certamente teve seus méritos na época. Mas seu parti pris epistemológico, sociológico, semiótico e psicanalítico exerceu também uma secreta tirania sobre hábitos saudáveis da antiga crítica literária. Quem se formou neste ambiente levou muito tempo e muito trabalho para recuperar informações valiosas e concretas para a avaliação da coisa poética e que se abrigam aquém da "ruptura epistemológica" infeliz que inaugurou elãs "teóricos", pelos quais a própria Leda não deixa de pagar um preço alto.
Neste sentido, seu capítulo sobre Flaubert (mas não só este) cita obedientemente o rol dos críticos franceses da segunda metade do nosso século que enquadram a obra flaubertiana na sua nova ótica, discorrendo sobre os "saberes, empíricos e livrescos, notadamente livrescos", estofo da obra de Flaubert. No mesmo parágrafo, Leda menciona "um crítico" que duvidou "da competência de Flaubert em história e o acusa de não distinguir entre a Capadócia e a Ásia Menor". Leda tirou esta informação da edição Pléiade, sem se alongar sobre uma polêmica que envolveu, na verdade, dois críticos: o arqueólogo M. Frohner, conservador do Louvre, e Sainte-Beuve -o papa da crítica literária da época, considerado como ultrapassado pelos intelectuais franceses que formaram nossa geração.
Assim, suprime-se, en passant, uma das polêmicas mais elucidativas na qual Flaubert prova o rigor e a veracidade histórica do romance. O que está em questão nesta esgrima -particularmente elegante e divertida na resposta a Sainte-Beuve, que Flaubert admirava- é, além da questão historiográfica, o problema do primado da imaginação, que deve dirigir e corrigir os hábitos da percepção convencional. Flaubert se diverte respondendo longamente ao seu mestre Sainte-Beuve:
"Você lamenta, escreve Flaubert a Sainte-Beuve, que eu não introduzi entre os gregos um filósofo, um belo discurso racional que nos faça uma lição de moral levando a boas ações, um senhor que, afinal, sinta e pense como nós!".
"E, como estamos para nos dizer algumas verdades, confessarei francamente, caro mestre, que a ponta de imaginação sádica (que você me atribuiu) me feriu um pouco. ... O horror (dos sacrifícios de crianças que você atribui ao meu sadismo) não faz para mim nenhuma dúvida. Você não se lembra que os sacrifícios humanos não foram ainda completamente abolidos, na Grécia, na batalha de Leuctres?" (seguem informações documentadas sobre ifanticídios até o século 5º depois de Cristo...).
Flaubert não deixa nenhuma dúvida quanto ao fato de que a relação algo perturbada e quase perversa com as idéias da razão não brota da sua imaginação, mas distingue personagens históricos perfeitamente reais -antigos, medievais ou modernos-, e isto até em lugares e tempos que o hábito veio a considerar como pontos altos do Espírito. Aludindo às estranhíssimas torções da alma que produziu a cultura de Port-Royal -o movimento jansenista tão admirado por Sainte-Beuve-, Flaubert inverte o processo crítico:
"Uma última pergunta, ó mestre, uma pergunta inconveniente: por que você acha meu sacerdote Schalabarim quase cômico e os seus 'bonshommes' de Port-Royal (filósofos como Pascal e Arnauld, este último interlocutor de Descartes) tão sérios. Para mim, o senhor Singlin é fúnebre comparado aos meus elefantes. Eu considero os bárbaros tatuados como menos anti-humanos, menos requintados e raros que gente vivendo constantemente junto, chamando-se, até a morte, de 'Monsieur!'±".
O que importa nesta esgrima entre autor e crítico não é o pormenor historiográfico, mas a prova de que a imaginação romanesca é um modo preciso de explorar a zona cinzenta entre matéria e espírito, conhecimento e razão, experiência e idéia: exemplo falante de teoria em ação que diz e explicita ao que veio.
Se o mérito das "Lições de Literatura Francesa" é o de esboçar uma visão de conjunto dos autores apresentados, nem sempre é feliz a união de abordagens tão divergentes quanto as de Borges e Derrida, de René Dumesnil e de Michel Foucault, de Thibaudet e de Genette, no espaço de poucas linhas.

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