São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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Tarde demais para perdoar

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

William Wyler é, sem dúvida, um grande diretor de cinema. Na programação das televisões à cabo temos a bela oportunidade de rever alguns de seus melhores filmes. Três deles, em particular, chamam a atenção pela maestria estética e pela atualidade moral, "Tarde Demais" (1949), "Chaga de Fogo" (1951) e "Infâmia" (1962). No três, Wyler analisa o tênue limite entre a virtude e a crueldade.
As heroínas -Olivia de Havilland, em "Tarde Demais", Eleanor Parker, em "Chaga de Fogo", e a dupla Audrey Hepburn e Shirley MacLaine, em "Infâmia"- são alvo de uma moral implacável, que não lhes deixa outra saída, exceto responder com ódio ao ódio de que foram vítimas. Há um ponto, mostra Wyler, em que o perdão não é mais possível, pois quem poderia perdoar renunciou à Justiça em troca da vingança.
O impacto emocional dos filmes é extraordinário. Num dado momento, personagens e espectadores são levados a crer que o desfecho feliz ocorrerá, não obstante as evidências contrárias. Mas Wyler quer justo mostrar como a boa ocasião perdida dificilmente é recuperada. A dor da injustiça, excessivamente prolongada, torna-se irreversível. Ou sabemos reconhecer a chance que a vida nos dá ou não haverá segunda chance. E, Wyler é eloquente, nada mais impiedoso, triste e feroz do que um universo moral sem perdão.
Passemos a outra cena. Copacabana à luz do ocaso; 18h de uma sexta-feira trivial. Aos gritos, descomposturas e brutalidades, um policial aponta a arma para um rapaz de 17 ou 18 anos que roubara um relógio de pulso e se escondera num caminhão de entulhos, estacionado em frente a um edifício comercial.
O rapaz, negro, mal vestido, magrinho, todo sujo de lixo, tremia da cabeça aos pés. Em torno, uma dúzia de pessoas, aproximadamente, apoiava o policial que, rindo, anunciava o que esperava o rapaz na cadeia. Em seguida, os comentários, quase todos no sentido de pedir a pena de morte ou mais repressão para "vagabundos", "desordeiros", "bandidos", "ladrões" e assim por diante. Um senhor ao meu lado tentou intervir. Aproximou-se do grupo e perguntou ao rapaz, num tom afável: "Por que você fez isso?". O rapaz baixou a cabeça, sem responder, e o policial pediu ao senhor que se afastasse e não procurasse impedir a ação legal.
Não sei se é legal ou não. Talvez alguma coisa seja; talvez muita coisa não seja. Mas, legal ou não-legal, o que isso tem a ver com a trincheira que estamos cavando entre nós, "cidadãos virtuosos", e eles, "miseráveis viciosos"! O que é mais desumano, a virtude das boas consciências raivosas ou o gesto cego, bruto e impensado de quem negocia a liberdade por um relógio de pulso? Vendo o medo que o rapaz sentia e a indiferença dos que o cercavam, pensei se, no Brasil, já não atravessamos a fronteira em que o perdão ainda é possível.
Não imagino outra reação do rapaz preso a não ser o ódio e desejo de revanche. Por que, pergunto, com raríssimas exceções, temos uma concepção tão tacanha de Justiça? O que prisões superlotadas, pancadarias, injúrias morais e humilhações têm a ver com "recuperação" de delinquentes e "proteção da sociedade"? Estamos nos protegendo do quê, com esta truculência cotidiana contra os explorados e desamparados! Como nos filmes de Wyler, empurramos e continuamos empurrando os mais frágeis até onde não há mais retorno, e desconfio, nenhuma segunda chance provavelmente nos será dada.
Não me deixo convencer. Alguma coisa está errada, muitíssimo errada no rumo que tomamos. Para que queremos riqueza e desenvolvimento se o preço pago por isso é a dureza empedernida do rancor, do desdém e do desprezo mútuos com que nos estamos no habituando, com enorme rapidez e facilidade! Onde estão os quilos de sabedoria e ciências estocados em livros, teses e paredes universitárias! O que fizemos de tudo isso? Onde está nossa memória do passado, da violência da escravidão, das perseguições assassinas do movimento militar e de tantos sonhos de um mundo melhor! Tudo isso parece evaporar-se diante do olhar desprotegido, amedrontado, ressentido e vingativo do garoto.
Não custa lembrar o que dizia Santo Agostinho: "Sem Justiça, o que são os reinos senão grandes assaltos; o que são os roubos senão pequenos reinos?". Muitos não terão tempo, paciência ou interesse de ler o bispo de Hipona. Vejam, então, os filmes de Wyler. Talvez eles nos ajudem a compreender que, passado um certo tempo, tudo é tarde demais.

E-mail jfreirecosta@ax.ibase.org.br

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