São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997![]() |
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Zuzu Angel, a lei e a comissão
LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO O indeferimento do pedido de indenização formulado pela filha de Zuzu Angel gerou uma repercussão proporcional à reação militar que se seguiu ao atendimento dos pedidos dos familiares de Marighella e Lamarca.Há um ano, a Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos era acusada de parcialidade política, de ultrapassar os limites da lei, de beneficiar terroristas que não mereceriam compaixão. Agora, além do compreensível destempero da requerente, somos acusados de insensibilidade, de adotar uma posição burocrática e inflexível, de ofender a memória de uma admirável mulher. Nas duas oportunidades, percebe-se a tentativa de desqualificar a comissão e seus membros. Relator de dois desses processos polêmicos (Marighella e Zuzu Angel), sinto-me no dever de esclarecer alguns pontos aparentemente desconhecidos. Em primeiro lugar, o exame dos pedidos de indenização não envolve o julgamento moral das vítimas do regime de 64. É óbvio, ninguém se transforma em "herói", ou deixa de sê-lo, por conta e ordem da comissão. Nosso papel é simplesmente verificar como agiram, em cada caso, os agentes da repressão. Em segundo lugar, as decisões não são sentenças definitivas da história, capazes de esgotar a discussão em torno dos processos. Pelo menos duas décadas nos separam dos episódios, é muito tempo, e boa parte dos arquivos do regime militar permanece oculta. O futuro poderá retificar algumas das nossas conclusões -o que não desmerece os esforços atuais de investigação nem nos desobriga de respeitar a prova dos autos. Em terceiro lugar, a lei é a referência básica. A comissão foi criada pela lei 9.140/95, que delega aos seus integrantes, entre outras atribuições, a de reconhecer o nome de pessoas que, por motivação política, tiveram morte não-natural "em dependências policiais ou assemelhadas". Portanto, nem toda morte causada pelos agentes da repressão deve ser em princípio acolhida. Foi uma opção do legislador restringir o alcance da norma aos militantes detidos, e cabe aos intérpretes, sobretudo aos que não estão envolvidos emocionalmente nessa dolorosa viagem ao túnel do tempo, aplicá-la com rigor técnico. Não há espaço para o chamado "jeitinho" ou para "flexibilidades". Os votos refletem convicções sinceras. Há temas consensuais. Se a pessoa foi molestada e morta em delegacia, quartel, presídio, casa particular de tortura etc. ou neles se suicidou, a indenização é devida. Do familiar ao general, não há divergência. As diferenças aparecem quando o evento se deu fora dos limites de uma base física fechada. Prevaleceu a tese, aceita pela maioria, de que a indenização também é devida se o militante político tiver sido executado depois de já estar sob o domínio e a responsabilidade do agente policial. Essa interpretação extensiva da lei tem suporte lógico e jurídico, porque a detenção da pessoa não tem como termo inicial a sua entrada numa cela ou numa sala de interrogatório. A partir do momento em que a pessoa está dominada, mesmo que após o calor de "violento tiroteio", a conduta do agente é materialmente mensurável. O policial não pode optar entre fuzilar o perseguido ou conduzi-lo ao cárcere. Foi o que aconteceu no julgamento do caso Marighella. Entre outros indícios de execução, havia o informe técnico e pericial de que o disparo fatal foi a curta distância, "quase encostado". O argumento contra essa ampliação funda-se no estado de guerra interna: eliminar o inimigo fazia parte das regras do jogo, e o confronto era legítimo. Tal excludente, contudo, não foi aceita pela maioria da comissão. Mesmo nas guerras, os limites existem. É preciso ser dito que muitos ficaram de fora do leque da lei, e a sociedade brasileira deve refletir a respeito. A comissão indeferiu 74 pedidos, entre outros 275 aprovados. É o caso dos que foram mortos pela oposição armada ao regime, como o posseiro do Araguaia executado por guerrilheiros porque o Exército o obrigou a atuar como guia; dos que tombaram em efetivo combate; dos que foram atingidos em manifestações e passeatas, em situação não caracterizada como de domínio do poder público; dos que, torturados e perseguidos, faleceram aos poucos; e dos que não atentaram para o prazo da lei. Também são vítimas da violência política, mas aos seus familiares, com todo o nosso constrangimento, foi negada a compensação tardia e simbólica. Só uma nova lei poderia beneficiar as pessoas atingidas e não atendidas. A comissão não pode legislar, usurpar uma função própria do Congresso. Mas vamos ao caso Zuzu Angel. Concretamente, a comissão especial reconheceu que permanecem as suspeitas em torno da sua morte, que havia motivos políticos para a eliminação da indignada mãe de Stuart Angel Jones e que o inquérito policial da época descartou indevidamente outras linhas de investigação, limitando-se a buscar evidências de que a motorista adormeceu. Para a maioria dos membros da comissão (cinco votos a dois), tais circunstâncias não eram suficientes para o deferimento do pedido. Faltava uma peça essencial para a montagem do quebra-cabeça. O fato é que não há indicações materiais de que a morte foi provocada por agentes da repressão. O recente parecer criminalístico revela as falhas do laudo original, mas não afasta a hipótese de acidente comum, não descarta nem a possibilidade de sonolência da motorista como causa determinante da primeira colisão: "(...) caso estivesse (dormindo), possivelmente teria despertado após o primeiro impacto". Assim, o quadro de indícios não se completa, e a dúvida persiste. A simpatia pela vítima e o sentimento de repúdio contra os terríveis métodos do regime militar não fazem desaparecer o espírito da lei nem o dever de decidir, apesar de todas as dificuldades, conforme a prova dos autos. Meu voto pode ser lido na Internet (www.uol.com.br/fsp/zuzu.htm) por qualquer interessado: não altera a história da vida de Zuzu Angel nem declara, como se diz por aí, a inocência dos agentes da repressão. Com todo o respeito pelos que pensam diferente, diante dos elementos disponíveis, afastar arbitrariamente a hipótese de acidente comum seria repetir, em sentido contrário, a atitude enviesada do delegado de polícia da época. Não é a nossa tarefa. Luís Francisco da Silva Carvalho Filho, 39, advogado criminal, é membro da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça, autor de "O Que É Pena de Morte" (Brasiliense, 1995) e integrante da Equipe de Articulistas da Folha. Íntegra do relatório publicado somente no Universo Online (www.uol.com.br/fsp/zuzu.htm) CASO ZUZU ANGEL A indenização relativa à morte de Zuzu Angel foi indeferida pela Comissão Especial por cinco votos a dois no dia 7 de agosto. Além do relator do processo, advogado Luís Francisco da S. Carvalho Filho, votaram contra o pedido o presidente da Comissão, Prof. Miguel Reale Júnior, o General Oswaldo Pereira Gomes, o Procurador da República Paulo Gustavo Gonet Branco e o consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores João Grandino Rodas. Votaram a favor da indenização o deputado Nilmário Miranda (PT-MG) e a representante dos familiares de mortos e desaparecidos políticos Suzana Lisbôa. A seguir, a íntegra do voto do relator, adotado pela maioria. RELATÓRIO Hildegard Beatriz Angel Bogossian pede o reconhecimento do nome de sua mãe, Zuleika Angel Jones, conhecida como Zuzu Angel, para os fins do artigo 4º, inciso I, letra "b", da Lei 9.140/95. A figurinista Zuzu Angel morreu em acidente automobilístico no dia 14 de abril de 1976, na cidade do Rio de Janeiro. Segundo o registro policial, o veículo que dirigia "saíra da pista indo colidir com a parte dianteira do viaduto Mestre Manuel, indo a cair a seguir na estrada da Gávea, após capotar seguidamente" (fls. 10). A morte foi constatada no local. O atestado de óbito (fls. 282) aponta como causa "fratura do craneo com hemorragia subdural e laceração cervical" e o auto de exame cadavérico (fls. 405) conclui pela citada fratura e por "laceração cortical". Como é do conhecimento público, Zuzu Angel era mãe de Stuart Edgard Angel Jones, militante político assassinado em estabelecimento militar e que faz parte da relação de desaparecidos da Lei 9.140/95. Profissional de sucesso, conhecida internacionalmente - vestia atrizes como Liza Minnelli e Joan Crawford -, Zuzu Angel chamou a atenção de quem estava a seu alcance para a violência política que atingira seu filho, criando sucessivos embaraços para os órgãos de segurança e para a imagem dos governantes brasileiros no exterior. Sentia-se ameaçada de morte. Os autos foram instruídos com farta documentação nesse sentido. Zuzu Angel traduziu e distribuiu a carta testemunho de Alex Polari sobre a morte de seu filho (fls. 13 e 19). Escreveu, entre outros, para o Presidente da República Ernesto Geisel (fls. 55), para Sílvio Frota, Ministro do Exército (fls. 56), para Henry Kissinger, Secretário de Estado dos EUA (fls 87), para o senador norte-americano Edward Kennedy (fls. 91 e 92), para D. Paulo Evaristo Arns, Arcebispo de São Paulo (fls. 54), para a Comissão de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos (fls. 95) e para a Anistia Internacional (fls. 11). Prestou depoimento ao historiador Hélio Silva (fls. 59), concedeu entrevistas, conspirou e acusou a Justiça Militar de farsa, por julgar e absolver seu filho, quando todos já sabiam que ele estava morto (fls. 153). Além de ousada, incansável e imprevisível, a agitação de Zuzu Angel contava com um poderoso aliado. Stuart era filho de cidadão norte-americano: o eco de seu desaparecimento foi ainda maior. Os protestos de Zuzu Angel foram registrados pelos órgãos de segurança. Em 1º de outubro de 1971, "pedido de busca" do CIE do Ministério do Exército solicitava informações sobre a "costureira" que realizou desfile de moda em Nova York, chamado de "passarela da tortura", onde "todos os modelos tinham a tonalidade do negro e se relacionavam com temas políticos". O documento informava que "na apresentação final Zuzu Angel apareceu toda de negro com uma caveira branca e relatou a morte violenta do seu filho, o terrorista STUART EDGARD ANGEL JONES, que na realidade está foragido". Seus passos foram monitorados. Uma mensagem confidencial de 1972 (fls. 187) esclarecia: "não houve participação de ZULEIKA ANGEL JONES no 1º Salão da Mulher", realizado no Copacabana Palace Hotel. Relatório confidencial da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, de maio de 1975, informava que a figurinista burlou o esquema montado para a proteção do General Mark Clark, em visita oficial ao país, e foi surpreendida quando entregava a sua esposa um dossiê sobre a morte de Stuart (fls. 75 a 77). Entre os documentos apreendidos na ocasião, a mensagem desesperada de Zuzu Angel, em inglês. Vejamos a tradução policial: "Stuart Edgard Angel Jones, meu filho único, torturado e assassinado pelo GOVERNO MILITAR BRASILEIRO. Stuart foi preso e levado para o CISA da Aeronáutica no Galeão, onde sofreu toda espécie de torturas. Seus torturadores entre os quais oficiais e praças após lhe haverem infligido todo o tipo de tortura, o amarraram a um jipe, com a boca quase colada à descarga, e acelerando o veículo, o fizeram inalar o gás venenoso continuadamente. Esta operação de martírio durou um dia inteiro, da manhã à noite. Quando meu amado filho pedia em sua agonia: 'água, estou morrendo', seus torturadores e assassinos riam e debochavam dele como fizeram com Jesus na cruz. Seu corpo nunca foi entregue a mim, sua mãe. Sinto uma grande e enorme dor." (fls. 78) A militância de Zuzu Angel incomodava. Suas cartas e suas atitudes, de uma forma ou de outra, redundavam em prejuízo para a imagem do regime militar. Na época em que Stuart desapareceu, o governo negava a prática da tortura. Zuzu Angel apunhalou a credibilidade do discurso oficial. É importante registrar, a abertura política era ainda tênue quando Zuzu Angel morreu, mas a prática da tortura já era visível internacionalmente: aconteceu seis meses depois do caso Herzog. Com efeito, era incômodo para o Ministro da Justiça receber um memorando do Presidente do Supremo Tribunal Federal solicitando informações sobre o caso, a pedido de um juiz aposentado dos Estados Unidos (fls. 45). Era constrangedor para o governo receber cartas de parlamentares norte-americanos, pelo canal diplomático, pedindo explicações sobre o episódio (fls. 109 e 113). Evidentemente, no plano interno, tudo isso estimulava uma certa tensão política. Para completar esse quadro de motivos, Zuzu Angel sentia-se ameaçada. Cerca de um ano antes de morrer, em abril de 1975, entregou ao compositor Chico Buarque de Holanda uma declaração lembrando que havia motivo para ser assassinada. O texto dizia: "Há dias recebi documento descrevendo com pormenores as torturas e o assassinato de que foi vítima meu filho Stuart A. Jones, pelo governo militar brasileiro. "Este documento está fora do país, em mãos de um dos parentes americanos de meu filho mártir. "Se algo vier acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou outro qualquer meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho." O compositor informa, em depoimento escrito e encaminhado ao relator, que, após a morte de Zuzu Angel, decidiu enviar, anonimamente, uma cópia do documento para parlamentares de oposição, editores e colunistas. Uma delas foi juntada ao processo (fls. 47) e contém a seguinte frase escrita a lápis: "esteja certo que não estou vendo fantasmas". Chico Buarque faz ainda referência a telefonemas anônimos que Zuzu recebia durante as madrugadas, com ameaças de morte. Por todos estas circunstâncias, o acidente fatal foi recebido com desconfiança, deixando o sentimento de que o poder público não apurou profundamente a ocorrência. O mistério em torno da morte de Zuzu Angel foi registrado pela imprensa e por historiadores, como Thomas Skidmore e Nelson Werneck Sodré. O nome de Zuzu Angel consta no "Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos" (pág. 239) sob a rubrica "outras mortes", incluída na publicação, segundo a comissão organizadora, para registrar "óbitos ocorridos entre 1964 e 1979, que de alguma forma estão vinculados à ação da repressão tais como seqüelas de torturas, suicídios ou acidentais" (pág. 37). A requerente junta uma série de depoimentos de amigos de sua mãe, de pessoas que também compartilham esse sentimento de estranheza. Atestam, em linhas gerais, o quadro de ameaça (fls. 179, 415, 417), ter sido Zuzu Angel uma motorista cuidadosa (fls. 179, 180, 181, 182, 415, 417), sem o hábito de ingerir bebida alcoólica (fls. 181, 182, 415, 417), que seu carro foi submetido a uma completa revisão uma semana antes do acidente (fls. 180), e que naquela noite, pouco tempo antes, ela se apresentava bem, orgulhosa de suas filhas, sóbria e no pleno gozo de suas atividades intelectuais (fls. 416, 418). Após insistente busca, o ilustre advogado da requerente obteve a cópia do inquérito que apurou as circunstâncias da morte de Zuzu Angel e fotos do acidente. Os documentos que o instruem – particularmente o auto de exame cadavérico e o laudo de exame de local – serviram de base para o parecer criminalístico do perito Celso Nenevê. A pedido da requerente o corpo de Zuzu Angel foi exumado pelo antropólogo forense Luís Fondebrider. Em "alegações finais", a requerente aponta fragilidades, contradições e omissões do inquérito policial. É com base nesse conjunto de evidências que a requerente postula o reconhecimento do nome de Zuzu Angel para os fins da lei 9.140/95, salientando que "não há como recusar a responsabilidade do Estado, seja direta ou indireta, em sua morte". VOTO Como se depreende da análise dos documentos que instruem o processo, haveria uma motivação política para a eliminação de Zuzu Angel. A figurinista denunciou a tortura e a morte de seu filho, e, para a localização de seu corpo, ela enfrentou o cinismo dos organismos de segurança e atingiu a imagem do governo militar. Foi perseguida, não há dúvida disso. O seu sentimento de ameaça era legítimo. Não existe, contudo, a prova concreta de que a morte de Zuzu Angel foi deliberadamente provocada por um agente do poder público e por razões de natureza política. Os elementos de convicção trazidos para os autos - a motorista era cuidadosa, não ingeria bebida alcoólica, deixou um bilhete, um ano antes, aventando a possibilidade de ser morta em acidente, as falhas do inquérito policial e o parecer criminalístico - não são suficientes para se concluir por um homicídio doloso, praticado por agentes da repressão. Há realmente sérias omissões no inquérito policial: estranhamente, por exemplo, não se apurou com a devida profundidade como o poder público foi chamado ao local. De fato, como aponta a requerente, a leitura das peças do inquérito revelam uma clara predisposição por parte da autoridade que presidiu as investigações. A partir da conclusão do laudo do exame de local (a motorista "não se encontrava de posse de seus reflexos normais de auto-defesa"), o delegado se limitou a buscar elementos que apoiassem a hipótese de que Zuzu Angel dormiu ao volante. Mas, com efeito, não há elementos para se afirmar, com segurança, que a autoridade policial agiu com o propósito de ocultar a causa da morte. Vejamos a prova técnica. Em poucas palavras, a dinâmica do acidente descrita pelo laudo oficial é a seguinte. O veículo desviou, primeiro, para a esquerda, colidindo com a guia. Depois, desviou para a direita, com nova colisão, agora com a guia direita, permanecendo o veículo em movimento até a colisão frontal com uma mureta de concreto do viaduto, que determinou o tombamento e as seguidas capotagens. Não foram encontrados obstáculos que pudessem dar causa à primeira colisão, nem sinais de que a motorista acionou os freios e, pelas bases de cálculo admitidas internacionalmente, constatou-se que ela trafegava em velocidade alta. O exame de dosagem alcoólica foi negativo. O parecer criminalístico de Celso Nenevê, não poderia ser diferente, é técnico e cauteloso. Em relação ao laudo original, sua discordância básica está na conclusão dos peritos, considerada inadequada, de que o motorista sofreu "total privação dos reflexos de defesa". Talvez por isso, como realça o parecer, "as investigações, aparentemente, restringiram-se a tese de sonolência". Contesta, também, a informação de que Zuzu estivesse dormindo "quando sofreu os impactos fatais". Mas não chega a descartar a possibilidade da sonolência. O perito Celso Nenevê acrescenta: "caso estivesse (dormindo), possivelmente teria despertado após o primeiro impacto contra o obstáculo fixo (meio-fio esquerdo)". Diferentemente dos peritos, para Celso Nenevê, o "desvio de direção à esquerda, pode, presumivelmente, constituir-se em uma manobra voluntária em uma reação de auto-defesa diante de um perigo iminente (caso em que o motorista é surpreendido por obstáculo móvel ou por súbita interceptação de trajetória...". Segundo o parecer, não podem ser excluídas as hipóteses de "entrada inopinada de pedestres, animais e outros objetos móveis, como também a súbita interceptação da trajetória (sem contato físico) do veículo acidentado (fechada)". A inexistência de outros sinais de "auto-defesa", a partir desta primeira colisão, poderia decorrer de uma série de fatores "como o susto em razão deste impacto, o processo de derrapagem, quem sabe até a perda do controle de direção, ou, ainda, possíveis danos no sistema de direção". As conclusões do parecer de Celso Nenevê são as seguintes: "1. A causa determinante do acidente foi o desvio de direção para a esquerda, por motivo que não se pode precisar materialmente, resultando na colisão do veículo contra o meio fio deste lado da pista (canteiro central), o que resultou numa subseqüente derivação para a direita, em processo de derrapagem, até o impacto com o meio-fio direito, vindo, seqüencialmente, colidir a sua região frontal esquerda contra a mureta de concreto existente neste lado da pista (viaduto). Este impacto gerou uma força resultante (de reação), a qual fez que o veículo girasse (cerca de 180º), adentrasse no talude adjacente, onde experimentou tombamento seguido de sucessivos capotamentos. Nesta área, o veículo assumiu a sua posição de repouso final, conforme ilustra o croqui e as fotografias analisadas pelo signatário deste parecer. "2. A constatação por parte dos signatários do Laudo original da não existência de 'qualquer outra avaria que implicasse em colisões que não as já citadas', bem como a de que 'por ocasião dos exames a pista se achava seca, inexistindo deformidades ou obstáculos fixos, que pudessem ter concorrido para o evento interferindo na trajetória dos veículos que por ali trafegam', excluem estas hipóteses (colisão com outro veículo e/ou desvio de obstáculos ou deformidades, quer pelo veículo acidentado ou por terceiros) do rol dos motivos materialmente perceptíveis que pudessem ser indicativos da causa do desvio de direção. "3. O desvio de direção à esquerda, pode presumivelmente se constituir em uma manobra voluntária em uma reação de auto-defesa, diante de um perigo iminente (caso em que o motorista é surpreendido por obstáculo móvel ou por súbita interceptação de trajetória (fechada de outro veículo), o qual não se logrou êxito em determinar esta ameaça materialmente. "4. O excesso de velocidade concorreu para o agravamento do acidente, como descrito no laudo. "5. Todas as lesões descritas para a vítima são compatíveis com os ferimentos comumente encontrados em acidentes desta natureza." Como se vê, não há qualquer afirmação que permita excluir um acidente comum. A relevância do parecer está em reintroduzir ao cenário hipóteses indevidamente afastadas pela autoridade policial da época. O caso permanece em aberto. Tanta mentira foi dita a respeito da morte de Stuart Angel Jones que é natural o sentimento de desconfiança em torno da morte de Zuzu Angel. A convicção das pessoas, contudo, não basta. Não há a prova necessária e capaz de estabelecer, com absoluta clareza, a relação entre as circunstâncias políticas e o evento final. Há dúvidas, mas não há uma certeza. É diferente do que aconteceu com seu filho. Se, de fato, Zuzu Angel foi eliminada pelos órgãos de repressão, como sustentam seus familiares, ainda não há como reconstituir a anatomia do delito. Ela foi alvejada? Estava sendo perseguida e ouve uma tentativa de interceptação? O veículo foi objeto de sabotagem? Não há resposta nos autos e, sem a resposta, não há como se concluir, tecnicamente, pela procedência do pedido. Falta este elemento material ao emaranhado de indícios. A previsão da Lei 9.140/95 é a de reparar o desaparecimento ou a morte, não natural, de quem, por motivo político estava detido ou sob a guarda de agentes do poder público. A situação não está demonstrada. O objetivo da lei não é o de reparar outras ocorrências envolvendo pessoas que, em circunstâncias diferentes, também foram vítimas do regime militar. Homens e mulheres foram atingidos, e trouxeram no corpo e no espírito as marcas da brutalidade e da perseguição. Muitos poderiam ter vivido mais e ter sido felizes, não fosse o sofrimento imposto pelo regime político de exceção. Mas nem por isso a indenização da Lei 9.140/95 é devida. Em respeito à lei, a relação de causa e efeito há ser direta, segura, insofismável. Zuzu Angel foi atingida naquilo que, sem dúvida alguma, tinha de mais precioso. Torturaram, mataram e fizeram desaparecer o corpo do seu filho. Sua dor e sua indignação são uma senha para se compreender o trabalho desta Comissão. A grandeza dessa mulher não é efêmera e está acima da nossa decisão. Apesar das suspeitas em torno da morte de Zuzu Angel, por falta de provas de que a vítima estava de alguma maneira sob o domínio de agentes do poder público, voto pelo indeferimento do pedido. Luís Francisco da S. Carvalho Fº Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã Texto Anterior: A antipolítica industrial Próximo Texto: CPI dos Precatórios; Intercâmbio nos EUA; Teoria da Dependência; Internacionalização; Piores da TV Índice |
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