São Paulo, domingo, 17 de agosto de 1997
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As sacanagens de Gugu Neoliberato

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Imagine a seguinte cena: Gugu Liberato sobe ao palco do "Domingo Legal". Veste apenas um fraldão. Numa das mãos, carrega o seu indefectível microfone; na outra, uma mamadeira tamanho gigante. Completa-lhe a indumentária um chupetão de Itu, pendurado pelo pescoço.
Gugu dirige-se então ao centro do palco, onde repousa, inocente, uma garrafinha fosforescente. O maestro dá o sinal e solta o hit "Na Boquinha da Garrafa". Sorridente, o pequenino Gugu começa então a chacoalhar sobre aquele objeto fálico, executando a coreografia que conhecemos.
A cena é obviamente imaginária. É muito improvável que o sr. Liberato venha um dia protagonizá-la. Nem precisa. Quem atualmente exerce essa função no seu programa são crianças que devem ter, em média, uns cinco anos de idade.
São todas meninas. Vestem-se como Carla Perez e procuram "dançar" como Carla Perez. Muitas delas devem ter dentinhos de leite, outras exibem sorrisos banguelinhas. Talvez algumas ainda falem como Cebolinha, "tlocando" os erres.
Vendo essas "dançarinas mirins" fantasiadas no palco não há como evitar a sensação de que algo muito estranho está ocorrendo ali. Seria bom se o problema antes fosse estético e se resumisse ao grotesco da dança que imaginamos com o pequenino Gugu. É óbvio que a questão de fundo é moral. O mais difícil é tratá-la sem cair nas armadilhas do moralismo.
Que as crianças não são inocentes -longe disso- e que muitas vezes atuam para chocar o mundo dos adultos, são coisas que não deveriam ser mais novidade para ninguém. Até aí, tudo bem. O problema se complica quando os adultos, aproveitando-se da falsa inocência que projetam sobre as crianças, passam a usá-las para exercitar suas perversões enquanto fingem estar apenas propondo uma brincadeira inocente e pura.
A perversão de Gugu é tanto maior na medida em que se manifesta atrás de uma cortina de moralismo e sobriedade. O terno cinza, a gravata de gerente de banco, o ar de bom-moço servem como álibi para que o apresentador use as crianças para contemplar a perversidade da audiência e ainda assim mantenha a pose de pai de família.
Ao contrário de seu concorrente Fausto Silva, que, a despeito de seus espasmos moralistas, é basicamente chulo, escatológico e avacalhado, Gugu insiste na pretensa retidão de sua imagem.
É só uma questão de estilo -ou de falta dele. Uma comparação, mesmo superficial, entre o "Domingo Legal" e o "Domingão do Faustão" mostra que são mais parecidos do que provavelmente gostariam.
Se a aberração é mais explícita no "Domingo Legal", isso se deve ao fato de a programação do SBT visar antes de tudo o povão. A mágica da Globo é atingir o andar de baixo sem perder a audiência do público dito qualificado. Essa é a "diferença".
As miniaturas de Carla Perez rebolando sobre garrafas estão para Latininho na mesma medida em que Gugu está para Faustão. O fato de que o primeiro tenha incorporado a exploração do universo infantil ao jardim zoológico dominical talvez seja a prova de que a última trincheira moral foi rompida.
Liberada de qualquer parâmetro ético, a caça à audiência exercita-se agora livremente no ambiente da hiperconcorrência. São sinais de um tempo neoliberato.

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