São Paulo, segunda-feira, 18 de agosto de 1997
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Opinião pública

JOÃO SAYAD

De repente, às 8 horas da manhã, o rádio do carro começou a vociferar e reclamar. A juíza de Brasília decidiu que o crime dos rapazes que queimaram o índio pataxó era crime culposo -lesão corporal resultando em morte. E não crime doloso, ou seja, com a intenção de matar.
O mundo veio abaixo. O sujeito do rádio gritava que este é o país da impunidade, que a sentença era inaceitável. E durante o dia todo, o rádio e a televisão gritaram contra a sentença. Quando não criticava a Justiça, clamava contra deputados, senadores, políticos e ministros.
Não ouvi nada sobre a complexidade do caso, as dificuldades da juíza, nenhuma dúvida, nenhuma perplexidade. A opinião contra era maciça, única, impermeável.
A violência dos comentários jornalísticos poderia se justificar pela vontade de agradar o público ouvinte ou telespectador. Mas a violência da reação era, antes de mais nada, a chave para entender a própria violência desse crime e de outros crimes.
Cheguei na faculdade onde dei aula sobre as dúvidas conceituais que existem sobre o imposto inflacionário e sobre os efeitos benéficos do Plano Real para as classes de renda mais baixa. Apenas dúvidas. Os alunos atentos e curiosos ouviram como se estivesse falando sacrilégios.
À noite assisti televisão. O jornalista da seção de economia entrevistava personalidades. Como muitos comentaristas de economia, falava como se fosse Moisés, ameaçando do alto da montanha os adoradores do bezerro de ouro. E o déficit? E a poupança? E o balanço comercial? E os deputados que não aprovam as reformas?
O mesmo jornal mostrou as opiniões de um líder da esquerda. Como gritava! Como estava bravo! Como tinha certeza! Era contra o programa neoliberal do presidente Fernando Henrique Cardoso e apresentava o seu, onde haveria grande aumento da poupança interna! A direita adora a poupança externa. A esquerda, a interna.
A única notícia simpática do rádio se referia ao comunicado dos coronéis da PM que pediam recursos do Proer para a segurança pública, que vinha junto com a notícia da aprovação do FEF até 1999. Um pedido ingênuo ou irônico, mas que falava coisas certas e de uma forma sincera. Precisamos de dinheiro para a segurança pública.
Confesso que fiquei cansado do Brasil. Uma irritação parecida com a que desenvolvemos com os amigos íntimos depois do convívio de uma longa viagem, a irritação que temos com os irmãos ou com a esposa. Uma mistura de amor e raiva.
Gostaria de ter outra profissão, de fazer parte de outra nação. Uma nação de não especialistas em coisa alguma, de pessoas tolerantes e cheias de respeito sobre as opiniões alheias, com dúvidas e questões sobre muitas coisas. O que será que levou a juíza a tomar esta decisão? Por que o déficit público vai diminuir? O que é mesmo poupança?
Fiquei com saudades da época da censura dos anos escuros da ditadura, quando o "Estadão" publicava poesias, a Folha deixava espaços em branco, a "Veja" escrevia nas entrelinhas e a música do Chico Buarque de Holanda, "O que será?" era censurada simplesmente porque perguntava o que será. Naquela época, as palavras não podiam ser ditas, porque eram importantes.
Hoje em dia, não. Você pode falar o que quiser, mostrar, cantar ou opinar sobre o que quiser, como quiser. Porque não tem importância. É apenas mais um produto comercial, que pode agradar e dar lucro ou não. O destino das coisas e as decisões vão acontecendo, independentemente do que se diz ou fala. Ninguém muda de idéia, pensa de novo, ou se enche de dúvida.
Hoje, graças a Deus, não temos censura, mas pensamos todos da mesma forma. Nenhum pastor e um rebanho. Nenhum censor e nenhuma divergência.
Gostaria de fazer parte de uma nação com a fleuma dos ingleses, a tolerância das leis americanas e especialmente o silêncio prudente dos mineiros.

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